OVÍDIO











Metamorfoses
OVÍDIO
Tradução de Paulo Farmhouse Alberto
Livros Cotovia e Paulo Farmhouse Alberto, 2017, Lisboa (444 p.)
Oxford Classical Texts, 2014

O HOMEM
            Públio Ovídio Nasão nasceu em Salmo, a atual Sulmona, nos Apeninos, uns cem quilómetros a leste Roma, a 20 de março de 43 a. C. Viveu num tempo muito conturbado, de afirmação do Império Romano. Um ano antes do seu nascimento tinha sido assassinado Júlio César, com toda a confusão que se seguiu, com o fim da república, a guerra civil e aparecimento do império. Uma grande parte da sua vida viveu-a no tempo do imperador Octávio Augusto. A sua família era abastada, o pai pertencia à ordem equestre e proporcionou ao filho estudos de retórica e direito na cidade de Roma. Preferia que seguisse a oratória ou a via jurídica, a exemplo de Cícero, mas ele enveredou pelas letras. Atravessa um período de pujança cultural e económica de Roma, a Pax Romana, em que se distinguiram na literatura figuras como Virgílio, Horácio, Propércio e Tibulo. Em 23 a. C. Ovídio esteve em Atenas, fazendo uma incursão cultural pelo mundo grego, como era habitual entre as classes abastadas e cultas. Tinha uma vida intensa e escrevia bastante. Não se sabe ainda muito bem a razão por que em 8 d. C. foi banido da cidade de Roma por decreto de Augusto, e desterrado para Tomos, nas margens do Mar Negro, a atual Constança, na Roménia. Não mais conseguiu regressar a Roma, não obstante os seus pedidos e as diligências dos amigos, mesmo depois da morte de Augusto, em 14 d. C. Viveu por lá em situação de conforto económico, pois a sua condenação não previa a perda de bens, mas triste, disso se refletiu a sua obra, Tristia. Casou por três vezes. Morreu em 17 d. C.  


A OBRA
            A obra de Ovídio, como podemos ver a seguir, consta de poesia vária, que vai do estilo elegíaco ao didático e épico. Vejamos:
Amores (Elegia erótica)
Heroides (Amor e sedução)
Consolatio ad Liviam Drusi (Poema de condolências à mulher de Augusto, Livia Drusilla, por morte do seu filho Nero)
Medicamina Faciei (Cosmética para as mulheres)
Ars Amatoria (Como conquistar o coração das mulheres, bastante ousado)
Remedia Amoris Femineae (poema de amor de 814 versos)
Medeia (Tragédia: só chegaram aos nossos dias dois versos)
Fastos (Calendário romano poético)
Metamorfoses (O presente livro, sua magna opus)
Íbis (Denúncia de um falso amigo)
Tristia (Carta poéticas em dístico elegíaco do ano 8, já exilado)
Epistulae ex Ponto (Cartas em que pedem apoio de amigos junto do imperador).


O LIVRO, Matamorfoses


– UMA APRECIAÇÃO GERAL

            Muito se podia dizer sobre as Metamorfoses de Ovídio. Há este livro sínteses lapidares de meia dúzia de linhas, teses bem elaboradas de centenas de páginas, e o assunto ainda não está esgotado. Aqui não nos vamos alongar muito, dado que se pretende sobretudo fomentar a leitura de livros que marcaram a História da Literatura. Vamos só ficar por alguns tópicos, os mais importantes. Quem o desejar tem disponíveis trabalhos de grande gabarito, quer em livro quer em digitalizações. Prestigiadas universidades como as de Oxford, Bolonha, Paris, Lisboa, Coimbra ou São Paulo, para não falar de tantas outras menos acessíveis, como as alemãs, possuem sobre esta obra estudos que os especialistas podem recorrer e ir ainda mais além nas suas análises.  

a)      A importância deste livro
Pela forma primorosa como está escrito, pela reconstrução que faz da história e geografia do seu tempo, pela reconstituição que faz da mitologia greco-latina, de que constitui uma pequena enciclopédia, pela forma como resume a Eneida de Virgílio e a Ilíada e a Odisseia de Homero, e outras obras suas antecessoras, pela forma com influenciou a cultura ocidental entre os século XII e XVI, pela magia que o autor o reveste, esta é uma das obras literárias mais marcantes da literatura ocidental. O próprio autor se dá conta disso, quando nas estrofes finais do livro diz que jamais a ira de Júpiter ou o fogo o poderão destruir. O seu corpo morrerá, mas a sua obra será imortal.
Ele influenciou na literatura, entre outros escritores; Chrétien de Troyes, John of Garland, Beauvais, Dante, Afonso X, Shakespeare, Fernando Pessoa ou Kafka; na escultura e pintura os seus temas atraíra, Miguel Ângelo, Rafael, Ticiano, Corregio, Veronese, Caravaggio, Rubens, Bernini, Velasquez, Rembrandt, Eugéne Delacroix, Jean-Louis-François Lagrenée, entre outros; na música inspirou obras como Acis e Galateia de Haendel, Orfeu de Montverdi, Dafne de Jacopo Pei (a mais antiga ópera conhecida, escrita em 1594), mais tarde aproveitada com outro libreto por Richard Strauss, em 1938. Na psicologia inspirou Freud, vulgarizando tópicos como narcisismo. Na filosofia influenciou Descartes, J. J. Rousseau, Francis Bacon, Locke. Na nossa análise seguiremos de muito perto a introdução de Paulo Farmhouse Alberto, que é um estudioso que fala de Ovídio e desta época como se tivesse vivido nela e conhecesse o próprio autor.

Apolo e Dafne, escultura de Bernini

b) Um vislumbre de como está escrita em latim:
            As Metamorfoses usam o verso alexandrino, o hexâmetro dactílico, numa linguagem simples e direta, O seu estilo é híbrido. A obra tem uma vertente épica a percorrê-la, que herda de Homero e Virgílio, mas também uma faceta lírica, como os amores de Galateia, de Diana, de Vénus e Adónis, e de tantas outras personagens, elementos de oratória como os discursos de Ajax e Ulisses, partes bucólicas, em que ninfas povoam belos bosques e se deleitam nos rios, componentes de tragédia como a morte Jacinto, que curiosamente se metamorfoseia numa flor (morte e transformação), ou como Procne que dá a comer ao marido o seu próprio filho sem ele o saber, ou ainda Medeia, inspirada em Eurípedes. Leia-se este excerto do início do livro:

(A criação do mundo)
In nova fert animus mutatas dicere formas
corpora; di, coeptis (nam vos mutastis et illa)
aspirate meis primaque ab origine mundi
ad mea perpetuum deducite tempora carmen.
Ante mare et terras et quod tegit omnia caelum,
unus erat toto naturae vultus in orbe,
quem dixere Chaos; rudis indigestaque moles,
nec quidquam nisi pondus iners congestaque eodem
non bene iunctarum discordia semina rerum.

Como foi traduzida:
De formas mudadas em novos corpos leva-me o engenho
a falar. Ó deuses, inspirai a minha empresa (pois vós
a mudastes também), e conduzi ininterrupto o meu canto
desde a origem primordial do mundo até aos meus dias.

Antes do mar e das terras e do céu, que tudo cobre,
Um só era o aspeto da natureza no orbe inteiro;
Caos lhe chamaram. Era uma massa informe e confusa,
nada a não ser o peso inerte, nela amontoando-se
as sementes discordantes de coisas desconexas. 


c)       Um pequeno resumo do livro
As Metamorfoses constam de 15 livros com mais de 250 histórias (agora querem que se diga, estórias), contos, mitos, lendas. Os temas de que trata estão especificados nesta tradução no início do livro, não interessa aqui narrá-los. Os livros não definem o fim de um ou outro episódio, porque estes prolongam-se por vezes nos seguintes. Assim, o autor no livro I e II fala na criação do mundo, desenvolve uma cosmogonia; do livro III ao VI, incide mais na ação dos deuses e do seu poder de influenciar os humanos e transformar o mundo; do VI ao VIII trata de casos de paixão mais dramáticas e teatrais; entre meados do livro VIII e o XIV, ele volta-se para a história e mitologia gregas; ainda no livro XIV com Os Reis Latinos ele inicia a história de Roma até Júlio César e Augusto, divinizado, que se prolonga até ao fim do livro. 


d)      As Metamorfoses como uma história épica da antiguidade
Ovídio começa o livro nada mais nada menos como a pretensão de explicar a origem do cosmos. Fala de A criação do Mundo, das Quatro Idades, dos Gigantes dos primeiros tempos, e, ao reportar os acontecimentos a tempos e lugares, como que descreve para nós a geografia e a história da antiguidade clássica. Afonso X chamou às Metamorfoses a Bíblia dos pagãos, e com muita propriedade. Revelando muito sobre a personalidade e a ação dos deuses e deusas, com Júpiter à cabeça sobre o palatino romano, ele vai narrando a história dos humanos, intermediando-a de mitos e lendas, de histórias fabulosas, até chegar ao período grego mais recente, onde Roma pretende ir buscar as suas raízes à Grécia com a Eneida, até terminar, como se disse, em Augusto. Soube aproveitar-se da mitologia conhecida do seu tempo, que amalgamou com alguns factos históricos, para nos dar uma visão poética do mundo antigo.


Narciso de Caravaggio


e)       As Metamorfoses como síntese da literatura greco-latina
Ovídio quis ir além dos seus predecessores, e, para além dos acrescentos que faz à própria mitologia, introduz um novo estilo narrativo à literatura greco-latina. É evidente que recorreu a Homero, a Virgílio, a Eurípedes, a Quinto Énio, a Apolónio de Rodes, a Teócrito, a Lucrécio, a Catulo. Este seu livro é um manancial enciclopédico de mitologia. O Olimpo está aqui bem representado pelos seus deuses e deusas. As personagens mais terrenas, depois de serem esmiuçadas em violentas ações, refugiam-se ou sublimam-se por vezes em qualquer coisa apaziguante, com que garantam a eternidade. Assim, Áctis metamorfoseia-se num pinheiro, Cila; numa ave marinha; Ésaco, num ganso; Hécuba, numa cadela; Lico, numa gaivota; Méon num golfinho; os mirmidões, autênticas formigas, em seres humanos; Narciso, numa flor; Niobe, numa rocha; as plêiades, numa constelação de estrelas; Semíramis, numa pomba, e por aí além, mais de uma trintena de metamorfoses. À sua maneira ele foi revolucionário, precedendo o surrealismo. Os temas entroncam uns nos outros num todo contínuo, em que o autor se vai inspirar de tudo o que então estava escrito em latim e grego, recorrendo a vários narradores.

Estátua de Ovídio em Constança, Roménia, onde faleceu

f)       As Metamorfoses como um conjunto de lendas da antiguidade
O livro revela-se também com um repositório do imaginário clássico, com a apresentação de muitas das suas lentas, contos fantásticos onde a cultura ocidental mais tarde foi beber. Curiosas são as histórias de Cila, Circe, Faetonte, Ítis, Medusa, Pégaso, Perseus, Tântalo, entre tantas outras; bem como as transformações de Calisto, Dafne, Filomena, Leda, Narciso, Niobe, Procne. É óbvia a sua predileção pela gigantomania. A mitologia de entidades menos nobres também está muito presente com as dríades, as naídes, os sátiros, os centauros, as nereides (ninfas das mais variadas espécies), Píramo. Ele apresenta-as como factos reais, num mundo ainda pouco científico, em que o que estava escrito lapidarmente em verso adquiria o condão de conter a mais profunda verdade, num mundo arcaico em que havia ainda muito espaço para o sobrenatural. Este livro é uma janela para a antiguidade, lemo-lo duas vezes. Agora que passou por este pequeno texto, o leitor pode ir mais longe na apreensão do que nele está escrito. Trata-se de uma obra primordial da literatura, onde a cultura ocidental se foi inspirar ao longo dos tempos.

Martz Inura
30/01/2020




Nenhum comentário:

Postar um comentário