A Sibila
GUIMARÃES EDITORES
Quina (Joaquina Augusta) é uma mulher estranha, complexa, vigorosa, que vai surgir do nada, do restolho de aparentes fraquezas, achaques, fragilidades, se não virtudes misteriosas e enérgicas, que lhe vão dar auras de uma invulgar intuição. Possuirá mesmo faculdades sobrenaturais de ver o mais além das coisas, de ser tocada pela predestinação, no limite de se tornar profetisa: daí ela ser a "Sibila", um nome inventado para uma figura intrigante da História, originária da antiga Grécia, onde lia os oráculos dos deuses nos templos, e que em Roma passou a fazer profecias, actividade que deixou de exercer há muito, por a sua espécie estar desacreditada. Aqui ela vai ressurgir para reerguer a casa de Vessada, vai ter muito trabalho pela frente, mais que ler, ela vai ter que pensar, influenciar quem a rodeia, potenciar-se de extraordinários poderes: ter dons matriarcais.
O romance desenrola-se no meio rural, usando a autora um vocabulário rico e rigoroso, que vai buscar a dicionários há muito editados. Não raro aparecem-nos adjectivos como atroviscado (escuro), chula (ordinária), fulva (alourada), ou os verbos forcejar (esforçar-se), supurar (largar pus), revolutar (revolver), ou substantivos que já perderam o uso, por pertencerem a mundo que já não existe, ainda mais numerosos, como escano (escabelo), fueiro (um dos paus laterais do carro de bois, de pôr e tirar), rémora (pequeno peixe), que nos obrigam a investigar a Língua Portuguesa. A acção decorre sob um estendal imenso de lembranças, recordações, evocações, e está povoada de personagens femininas fortes, atulhadas de preconceitos, premonições, pudores, superstições, com opiniões obesas e rígidas sobre o mundo, que se recusam a mudar, mas ainda assim com lucidez suficiente para se manterem dominadoras.
O enredo inicia-se nos fins do século XIX, e as suas personagens movem-se em universos psicológicos vastíssimos, com um doce sabor dostoievskiano a atravancar a nossa alma. Agustina Bessa Luís, qual escultor que esteja a esculpir uma estátua, na sua busca interminável de lhe dar vida eterna, as vai construindo pouco a pouco, dotando-as de uma humanidade com evidência rara na literatura. Usa uma narrativa poderosa e pujante, que nos amarra à história, feita de um discurso caudaloso de situações e vivências, que nos transporta para miradouros mentais, onde possamos compreender um pouco daquilo que somos e fomos, que esteja no segregar das nossas vísceras, no resultado fortuito de circunstâncias, no somatório de todo um passado omnipresente a que não possamos fugir. O romance será naturalista, expressionista, neo-realista? Não se sabe, parece fugir a toda a classificação.
O estilo da autora é escorreito, por vezes fulgurante, de uma grande riqueza e originalidade. Não se perde em vulgaridades, transporta-nos a um mundo ancestral, cheio de magia, com personagens de um psiquismo escultural a povoar a paisagem humana por onde deambulam. Sobre Quina as descrições são proliferas, mas faz também uma reconstrução de hábitos, usos e costumes, que às vezes mais parece um tratado de Etnologia. Não explora paixões exacerbadas de tragédias gregas, intrigas obcecantes a que não queiramos perder o desfecho. Tudo ali segue o seu curso natural, com um rio que cave o seu leito serenamente com a sabedoria de milhões de anos. Os adjectivos, por vezes comuns, são buscados originais, parecendo chegar até nós ainda virgens, e alguns substantivos, para objectos ou situações que já não abundam ou se finaram, ela os faz ressuscitar naturalmente, chegando à nossa memória cheios de um passado quase romântico.
Este romance pode pecar para alguns leitores, que o achem demasiado descritivo de pessoas e coisas, ao ponto de aquelas quase abafarem as relações pessoais e sociais. Outros que gostem menos dele poderão argumentar que lhe falta um enredo dramático que nos envolva, e que, apesar de atingir os limites da perfeição na análise psicológica e etnográfica, se remete a um mundo, onde a vida tem um sabor local, regional, perdendo por isso universalidade. Pode dizer-se que o romance se focaliza artificialmente na mulher em detrimento do homem, aqui normalmente irresponsável, mulherengo e malandro. Pode até admitir-se que o romance está escrito primorosamente, mas sem nada de polémico, nada que consiga indignar meio mundo e abalar as consciências, desiderato com que outros autores foram sendo conhecidos e reconhecidos internacionalmente, possuindo uma obra literária de uma grandeza, porventura inferior à sua. Toda a obra tem aspectos menos conseguidos, mas, diga-se lá o que disser sobre este romance de Agustina Bessa Luís, que, para quem não queira ficar por frivolidades e se queira aprofundar numa alma, se desfruta de um prazer raro ao ler as suas páginas. Trata-se de um romance magnífico. 03/2011 Martz Inura
O romance desenrola-se no meio rural, usando a autora um vocabulário rico e rigoroso, que vai buscar a dicionários há muito editados. Não raro aparecem-nos adjectivos como atroviscado (escuro), chula (ordinária), fulva (alourada), ou os verbos forcejar (esforçar-se), supurar (largar pus), revolutar (revolver), ou substantivos que já perderam o uso, por pertencerem a mundo que já não existe, ainda mais numerosos, como escano (escabelo), fueiro (um dos paus laterais do carro de bois, de pôr e tirar), rémora (pequeno peixe), que nos obrigam a investigar a Língua Portuguesa. A acção decorre sob um estendal imenso de lembranças, recordações, evocações, e está povoada de personagens femininas fortes, atulhadas de preconceitos, premonições, pudores, superstições, com opiniões obesas e rígidas sobre o mundo, que se recusam a mudar, mas ainda assim com lucidez suficiente para se manterem dominadoras.
O enredo inicia-se nos fins do século XIX, e as suas personagens movem-se em universos psicológicos vastíssimos, com um doce sabor dostoievskiano a atravancar a nossa alma. Agustina Bessa Luís, qual escultor que esteja a esculpir uma estátua, na sua busca interminável de lhe dar vida eterna, as vai construindo pouco a pouco, dotando-as de uma humanidade com evidência rara na literatura. Usa uma narrativa poderosa e pujante, que nos amarra à história, feita de um discurso caudaloso de situações e vivências, que nos transporta para miradouros mentais, onde possamos compreender um pouco daquilo que somos e fomos, que esteja no segregar das nossas vísceras, no resultado fortuito de circunstâncias, no somatório de todo um passado omnipresente a que não possamos fugir. O romance será naturalista, expressionista, neo-realista? Não se sabe, parece fugir a toda a classificação.
O estilo da autora é escorreito, por vezes fulgurante, de uma grande riqueza e originalidade. Não se perde em vulgaridades, transporta-nos a um mundo ancestral, cheio de magia, com personagens de um psiquismo escultural a povoar a paisagem humana por onde deambulam. Sobre Quina as descrições são proliferas, mas faz também uma reconstrução de hábitos, usos e costumes, que às vezes mais parece um tratado de Etnologia. Não explora paixões exacerbadas de tragédias gregas, intrigas obcecantes a que não queiramos perder o desfecho. Tudo ali segue o seu curso natural, com um rio que cave o seu leito serenamente com a sabedoria de milhões de anos. Os adjectivos, por vezes comuns, são buscados originais, parecendo chegar até nós ainda virgens, e alguns substantivos, para objectos ou situações que já não abundam ou se finaram, ela os faz ressuscitar naturalmente, chegando à nossa memória cheios de um passado quase romântico.
Este romance pode pecar para alguns leitores, que o achem demasiado descritivo de pessoas e coisas, ao ponto de aquelas quase abafarem as relações pessoais e sociais. Outros que gostem menos dele poderão argumentar que lhe falta um enredo dramático que nos envolva, e que, apesar de atingir os limites da perfeição na análise psicológica e etnográfica, se remete a um mundo, onde a vida tem um sabor local, regional, perdendo por isso universalidade. Pode dizer-se que o romance se focaliza artificialmente na mulher em detrimento do homem, aqui normalmente irresponsável, mulherengo e malandro. Pode até admitir-se que o romance está escrito primorosamente, mas sem nada de polémico, nada que consiga indignar meio mundo e abalar as consciências, desiderato com que outros autores foram sendo conhecidos e reconhecidos internacionalmente, possuindo uma obra literária de uma grandeza, porventura inferior à sua. Toda a obra tem aspectos menos conseguidos, mas, diga-se lá o que disser sobre este romance de Agustina Bessa Luís, que, para quem não queira ficar por frivolidades e se queira aprofundar numa alma, se desfruta de um prazer raro ao ler as suas páginas. Trata-se de um romance magnífico. 03/2011 Martz Inura