MILAN KUNDERA
A Insustentável
Leveza do Ser
Publicações Dom Quixote, Lda
NARRATIVA ACTUAL
Tradução de Joana Varela
O
HOMEM
Milan
Kundera nasceu a 1 de Abril de 1929, em Brno, Checoslováquia. Oriundo de
uma família da classe média, o pai era pianista e levou-o a ter contacto com o
músico Leos Janacek, mas não iria seguir a carreira de músico. Depois do curso
liceal entrou na universidade para estudar literatura e estética, mas não se
deu bem e acabou por se transferir para a área do cinema. Em 1950, acusado de
ter participado em actividades anti-partidárias é expulso do Partido Comunismo
e obrigado a renunciar à Universidade. Atravessa um período difícil. Como
estratégia de sobrevivência volta a ser admitido no Partido Comunista, embora
não se identifique com a política do partido. Em 1968 participa activamente na chamada
“Primavera de Praga”, que iniciava uma liberalização do regime. Porém, a União
Soviética não iria aceitar aquele desvio à sua ortodoxia política, e as tropas do
Pacto de Varsóvia invadem o país, fazendo suster as reformas em curso. Alexander
Dubscec tem de continuar a governação seguindo as directrizes de Moscovo. Kundera
pretendia fazer parte de uma frente reformista contra o totalitarismo comunista
soviético, para o que se junta a outros opositores ao regime, mas não o iria
conseguir. Em 1970 os seus livros são proibidos no seu país, é outra vez
expulso do partido e obrigado a deixar o ensino na Academia de Cinema de Artes Performativas de Praga. No meio de tanta obstrução deixa
a Checoslováquia, e em 1975 está a leccionar na Universidade de Rennes, na
França. Em desacordo com a política do seu país continua a escrever contra o
regime, e em 1979 é-lhe retirada a nacionalidade checoslovaca, que ele colmata
ao adquirir em 1981 a francesa. Continua a viver na França. É um autor muito
premiado. Em 1968 recebeu o Prémio da União dos Escritores Checoslovacos e o Prémio Médicis, Em 1973 recebeu o prémio do melhor romance estrangeiro publicado em
França pelo romance A Vida Não é Aqui, e o Prémio Mondello, pelo conjunto da sua obra recebeu em 1981 nos Estados Unidos da América o Prémio “Common Wealth Award”, e em 1985 o “Prémio Jerusalém”. A Insustentável Leveza do Ser foi
adaptada ao cinema em 1988 por Philip Kaufman.
A
OBRA
A obra de Milan Kundera,
influenciada por Franz Kafka, Robert Musil e Friedrich Nietzsche, é vasta e
variada, sendo constituída por poesia, contos, uma peça de teatro, ensaios e romances,
dos quais se destaca:
- A Brincadeira (1967)
- A Vida Não é Aqui ou A Vida
Está Noutro Lugar (Br) 1973
- O livro do Riso e do Esquecimento (1978)
- A Insustentável Leveza do Ser (1983)
- A Imortalidade (1990)
- A Lentidão (1995)
- A Ignorância (2000)
- A Festa do Esquecimento (2014).
ROMANCE
QUE VAI AQUI SER TRATADO: A Insustentável
Leveza do Ser
SINOPSE DO ROMANCE
Vai-se esboçar uma curta resenha do
livro, um romance de ideias, com laivos de ensaio. Sendo assim, não é o enredo
em si que o torna especialmente interessante, mas todo o significado filosófico
e ético que anda à sua volta. Está cheio de pequenas histórias, como aquela que
fala do filho de Estaline, do senador americano, da beleza não intencional, da
“Grande Marcha” que fizeram ao Cambodja, da petição para a libertação dos presos
políticos no país, do comentário ao dito de que se Deus fez os homens à sua
semelhança também lhe criou os intestinos, enfim, se lhe criou o bem também
criou o mal. O livro está dividido em seis partes e dezenas de capítulos,
muitos com apenas uma página, que são como degraus para as teorias que o autor pretende
apresentar.
O enredo concentra-se nos amores de
Teresa e Tomas, que se cruzam com os de Sabina e Franz, em que o autor vai aplicar
os seus conceitos, e até a sua moralidade, expressando o conceito de que o amor
devia ser separado do sexo. Para ele o amor é aquilo que torna suportável os
casais dormirem na mesma cama durante muitos anos, não uma relação sexual
casual e fortuita. Mostra vários estádios da invasão da Checoslováquia pelas
tropas do Pacto de Varsóvia em 1968, quando da “Primavera de Praga”, fala da
censura, da repressão, das perseguições, explana, enfim, os tipos de
sociabilidade que se criaram no seu país durante o regime comunista, as festas
que havia, como as pessoas interagiam com aquele sistema. Nem se vai dizer como
tudo aquilo acaba, o melhor é mesmo ler o livro.
PERSONAGENS PRINCIPAIS
Tomás,
um amante libertino que fica refém do amor possessivo de Teresa – a fraqueza
revelada força. Sendo
médico, possui um conforto financeiro que lhe permite dedicar o seu tempo à
simples fruição da vida. Tem um encontro inesperado com Teresa, a que não dá
importância, mas o mesmo não aconteceu com ela, que regressa à terra, uns
tempos volta para Praga, deixa as suas malas na estação de caminho de ferro e
vai procurá-lo a casa. Ele deixa-a ficar, pois ela nem tem para onde ir, e
assim se inicia aquele amor. Há uma paixão ou compaixão que os une. Outra
relação que mantém mais duradoura, embora informal, é com Sabina, também casada.
Encontram-se ocasionalmente para fazer amor, continuando com suas rotinas
quotidianas. É médico cirurgião em Praga, mas ao escrever um artigo de opinião cai
em desgraça e acaba por ser afastado. Tem de ir exercer medicina para província:
Mas também ali tem problemas e se enfada, acabando por se tornar lavador de
janelas em Praga. Sendo conhecido acaba por ser muito solicitado, sobretudo por
clientes negligenciadas pelos maridos, com quem tem encontros conjugais. Por
fim, para fazer a vontade de Teresa vai trabalhar para uma fazenda estatal na
província.
Tereza,
uma mulher simples, marcada pela relação difícil com a mãe e os complexos de
inferioridade que esta lhe arranjou com a sua educação doentia. É dotada de um
espírito sensível, mas conservadora, exalta a vida do espírito e da alma em
detrimento da vida carnal, que nessa perspectiva assume aspectos sujos e
repulsivos. Trabalha num bar mal frequentado, em que tem de aturar bêbados e
pessoas de mau porte. Depara-se com Tomas numa das suas mesas com um livro
aberto, pormenor que lhe deu uma conotação sublime, pois ligava-se com o
refinamento do seu espírito em oposição ao meio lodoso em que vivia. Foi para a
terra, e quando regressou a Praga
não parou até o encontrar. E quando o descobre sente ter encontrado o homem da
sua vida.
Ele sexualmente não
lhe é fiel, o que a faz sofrer, mas ela tudo suporta para manter aquela relação.
Sabina,
uma mulher que trai por prazer e nunca consegue materializar os ideais que
persegue. É a versão feminina de Tomas. Devotada à pintura, desdenha o
“realismo social” comunista. Rejeita prender-se a amarras emocionais. É
sensível mas voltada para si própria, distanciando-se da feiura do mundo. Quer ver-se
livre dos seus padrões emocionais e ideológicos, de modo a não ficar
condicionada por vínculos. No domínio do kitsch
incarna a leveza do ser, tal como Tomas não quer suportar o peso das grandes
decisões – peremptórias, definitivas. Nas palavras do autor ela personifica a
própria “insustentável leveza do ser”. Quando se afasta de Tomas e Teresa
experimenta o pesar da solidão, uma liberdade quase insuportáveis, mas ainda
assim reconfortante. Ela não percebia que afinal era essa a “insustentável
leveza” que perseguia, a paz mais absoluta.
Franz,
envolve-se com Sabina e a ligação com a pintora acaba por marcar a sua vida de
forma indelével. É a versão masculina de Teresa, gosta dela, não é capaz de a
deixar, e ela sexualmente acaba por ter relações com outros homens. Franz
admira a sua personalidade superior, de não querer agradar a ninguém, de querer
manter-se livre, ao contrário da sua própria esposa, Marie-Claude. Franz gosta
de ter visibilidade e refugia-se na utopia, na realização de grandes ideais,
como quando empreende a “Grande Marcha” ao Cambodja, também com o objectivo de impressionar
Sabina, mas não na cama.
Simão,
filho de Tomás, que não se dá com a mãe, de feitio demasiado conservador, e
que, já adulto, vai recuperar a amizade do pai, de quem se sente mais próximo,
apesar deste ser de momento um simples lavador de janelas.
Karenine,
a cadela Do casal Teresa/Tomas, velha e doente, a caminhar só com três patas, que
os acompanha ao fim, cuja morte é aqui descrita de modo bastante emotivo.
CONCEITOS
DO LIVRO
- A leveza do Ser
Milan Kundera vai aproveitar-se das
ideias de Parménides (430.C. – 460 a.C.), um filósofo grego pré-socrático que
fundou a filosofia do ser e não ser, do pesado e do leve, do frio e do quente, dilema
que o autor transporta aqui para a liberdade. O ser humano é obrigado a agir em
sociedade, tem de estar sempre a tomar decisões, o que pode faz com a maior das
facilidades, com a maior leveza, assim como toma uma poderá tomar outra, mas
uma vez tomada a decisão, ela está tomada, é irreversível, envolve uma certa
responsabilidade, tem muitas implicações, começa a ganhar peso na nossa mente,
para aliviar o seu peso temos de tomar outra decisão que nos vai acarretar mais
responsabilidades, e entramos neste ciclo vicioso da vida. Paradoxalmente, a
decisão pode facilmente ser tomada, facilmente podemos mudar, é leve, mas uma
vez tomada vai-se tornando pesada, ao ponto de não a podermos sustentar. A
responsabilidade é pesada, a liberdade é leve. No livro Tomas e Sabina são dos
que apreciam mais a leveza, querem sentir-se livres, não estarem obrigados a
compromissos. Podendo ser a leveza mais agradável, é mais volátil, o peso é
mais custoso mas mais estável. Para o autor “Quanto mais pesada é o fardo mais
próxima é a terra da nossa via, e mais ela é real e verdadeira”. Ele aplica
frequentemente no livro esta metáfora à política, à repressão. Sentir-se livre
é leveza, sentir-se condicionado é pesado. Sobre a leveza do ser Italo Calvino
escreveu: “O peso da vida, para Kundera, está em toda forma de opressão. O
romance nos mostra como, na vida, tudo aquilo que escolhemos e apreciamos pela
leveza acaba bem cedo se revelando de um peso insustentável”.
- O Kitsch
O termo kitsch é de origem alemã, e usualmente utilizado na estética para
designar coisa de imitação, artigo barato, a apelar ao gosto popular, mas
também empregue na política e nos mais variados domínios. Esta palavra começou
a ser utilizada a partir de 1870, para caracterizar os objectos que estavam na
moda, feitos sem rigor estilístico, focados mais na aparência que no conteúdo,
impondo-se ao gosto das massas. Exemplo: bibelôs imitando peças de arte mas de
pechisbeque e mal confeccionadas. É algo superficial, que vive das aparências,
pouco profundo, vulgar, todavia, popular por ter raízes em algo interessante ou
grandioso. Exemplos do livro no sentido político: A festa do 1.º de Maio em
Praga, uma comemoração a que todos se associam, têm medo de faltar, mas cujo
sentido comemorativo já se perdeu. As pessoas vão lá, verdadeiramente, não para
comemorar a libertação do trabalhador, mas porque é quase obrigatória a sua presença,
a sua ausência é objecto de crítica social e pode ter consequências negativas. Os
dirigentes, do alto dos seus palanques sorriam felizes para os cidadãos,
simulando uma felicidade que não existia. Mas atenção, o sentido da palavra
pode complexificar-se, o que é kitsch
para uns pode não ser para outros. Outro exemplo do kitsch político relatado no
livro é a operação de socorro organizada em 1975 (CICV e UNICEF) para acudir às
carências alimentares e médicas do Camboja (6.ª Parte, Cap. 14 a 22). Foram da
Europa e dos Estados Unidos dezenas de intelectuais, médicos e jornalistas,
aparentemente com o objectivo de acudir às populações, mas uma vez chegados à
fronteira não chegaram a entrar, por esta estar fechada e guardada por tropa
hostil. Mas nada que já não estivesse já previsto. O kitsch aqui está em que aquela operação humanitária escondia os
seus mais recônditos objectivos – o fazer uma viagem turística, promover o seu
altruísmo, afirmar a bondade da sua política, afirmar, enfim, o seu ego. Mas para
o autor o exemplo mais apurado do kitsch
é o político a dar um beijo numa criança quando tem um fotógrafo por perto. Enfim,
é o lado menos bom que pretendemos negar das coisas. No livro dão-se mais
exemplos. «O kitsch é um biombo atrás
do qual se esconde a morte», diz o autor a páginas 270.
UMA
APRECIAÇÃO GERAL
Trata-se de um romance de 1984, que
fala da ocupação da então Checoslováquia, em 1968, pelas tropas do Pacto de
Varsóvia, por a União Soviética não estar de acordo com as reformas liberais
que se estavam a implementar naquele país. Milan Kundera escreve este livro em
francês e na França, quando os seus leitores e muita da esquerda democrática começavam
a demarcar-se do comunismo, para si totalitário. Com esta envolvência, fácil
foi ao autor afirmar-se entre os escritores do seu tempo, numa França que
estava faminta destes testemunhos, sobretudo a esquerda progressista, que não
queria prescindir da liberdade, e que facilmente aderiria a este livro, se mais
não fosse pela sua carga política, que lhes era favorável.
Mas tenha à partida o autor garantida
esta aceitação, que o livro faz uma abordagem aprofundada de como os
checoslovacos reagiram à invasão, retrata com distanciamento e rigor o sistema
económico e político vigente no seu país, engendra uma análise social escorreita
daquela sociedade, coarctada pelos ideais comunistas de então, assentes na
ideologia do partido, afastadas das crenças religiosas, sexualmente libertária.
O livro está perpassado de juízos e conceitos, com pretensões a ensaio, que
fazem dele um romance filosófico, nada fácil de escrever, de difícil leitura, mas
nem isso vai impedir que tenha uma boa aceitação. Contudo, sendo le
excepcional, é tão complexo e intrigante que confundiu a intelligentsia europeia – ninguém se atreveu a premiá-lo.
O estilo do livro é corrente, como
se seguisse ao correr da pena, não tivesse por trás uma grande elaboração, mas
sem deixar de ser depurado, nada é ali dito ao acaso, nada é supérfluo. Visto
que as relações humanas são frágeis e o destino incerto, o autor salta de uma
história para outra, aparentemente de modo caótico, construindo a sua teia
visionária. Há o corpo, onde residem os instintos, de que recebemos
directrizes, e a mente, também condicionada pelo psiquismo, há ainda as tensões
e pressões existentes na sociedade, daí que o ser humano acabe por se tornar um
ser extraordinariamente complexo, distinto dos demais – ele é o resultado de
muitos factores, alimenta-se de muitas raízes, daí que seja muito difícil
criticá-lo com o devido rigor.
O romance assenta na biografia de
dois casais, mas pelo seu deambulo conta a história recente do seu país, integrando-a
no mundo de então. O indivíduo está em conflito com a sociedade, é pressionado
a decidir o seu futuro e age de modo improvisado. A vida para o autor é como
que um rascunho que o indivíduo esteja a fazer de si mesmo – para uma decisão não
há lugar a experiências, uma vez tomada está tomada. Trata de temas como o da
grande influência dos pais na educação dos filhos, da bondade ou não de um
mundo criado por Deus à sua imagem e semelhança, da natureza das relações
amorosas, que deviam separar o amor do sexo. Desenvolve a ideia do Eterno
Retorno de Nietzsche –, a vida segue em espiral, ela volta para trás, mas não
passa exactamente no mesmo lugar, daí que não se repita. Para o autor, apesar de
tudo nós somos o que somos – assume aqui uma posição existencialista.
Um dos seus pontos fortes está no
desenvolvimento do conceito de kitsch,
a deturpação da realidade, a mistificação da verdade, a sacralização da
hipocrisia, a focagem no supérfluo ignorando o essencial, outro está na
insustentável “leveza do ser”, isto é, na impossibilidade de vivermos
permanente ao abrigo do peso das nossas obrigações, temos de tomar
constantemente decisões para aliviarmos o peso da sua carga. A liberdade e a independência
são leveza, a opressão e a rigidez peso. Muitos procuram aliviar o peso
refugiando-se no mundo das ideias, das utopias, Tomas, nos artigos de opinião,
Sabina na pintura, Franz nos grandes ideais. A leveza tem o seu encanto, mas o
peso é mais decisivo. A mulher aceita o peso do homem, e é assim que a vida se
realiza. Tomas sai de Zurique pela relação (pesada) com Teresa, vai para a
província para uma quinta estatal para manter a relação com ela.
Conclusão, A Insustentável Leveza do Ser é um excelente livro, daqueles que
pode mudar um pouco a maneira como vemos o mundo. Para além do seu enredo
intrincado, aqui secundário, e de alguns conceitos novos, com a teoria do leve
e do pesado tenta explicar de uma forma bastante curiosa o comportamento humano,
e através do kitsch faz uma denúncia mordaz
contra a hipocrisia actual existente na cultura e na política, aclarando com as
suas palavras a cegueira que neste domínio frequentemente enferma o ser humano. A moral sexual de algumas personagens como Tomas e Sabina é lassa, praticavam o "amor livre", isto na altura pode-o ter prejudicado, mas ele apenas retratava a realidade do seu país.
Milan Kundera acrescenta qualquer coisa à literatura, quer do ponto de vista formal,
quer do ponto de vista material. É um romance clássico no domínio das ideias,
enriquecedor, de leitura obrigatória.
22/9/2016
Martz Inura
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