FRANZ KAFKA II






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FRANZ KAFKA
O Processo
Tradução de Gervásio Álvaro
EDITORA LIVROS DO BRASIL
Colecção Clássicos da Literatura (2007)

O HOMEM
Franz Kafka nasceu em 3 de julho de 1883, no seio de uma família judaica, na cidade de Praga, República Checa, então sob o domínio do império Austro-húngaro. Está no vértice de três culturas: a checa, a alemã e a judaica. Filho mais velho de uma fratria de seis irmãos, mantinha uma relação difícil com o pai, e até com as irmãs, com quem teve desavenças. Numa longa carta que escreveu ao pai, que não chegou a entregar e a mãe guardou, ele nos dá conta desse relacionamento traumatizante, que veio a moldar o seu carácter. Embora até certo ponto o admirasse, criticava-o, por, com o seu autoritarismo lhe amesquinhar a personalidade. A escrita constituía para si um refúgio. Tirou o curso de Direito, embora preferisse Filosofia, e sentisse alguma dificuldade nos estudos. Era uma pessoa reservada e insegura, revelando algumas dificuldades de integração social e muitas frustrações. Foi agente de seguros numa companhia privada. Sempre envolto em dúvidas, hesitações e receios, não chegou a casar. Morreu de tuberculose em 3 de unho de 1924, com apenas 40 anos de idade, num sanatório nos Alpes.

A OBRA
Embora seja um dos escritores com mais influência na literatura do século XX, a ponto de a partir do seu nome se inventar mais adjetivo para os dicionários do mundo «kafkiano», a sua obra nem por isso é muito extensa. Resume-se a uma coletânea de contos, e os romances:
Metamorfose (escrito em 1912 e publicado em 1915);
O Processo (escrito em 1914 e publicado em 1925);
O Castelo (escrito em 1922 e publicado em 1926);
A América (incompleto, escrito em 1910 e publicado em 1927.

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              Monumento a Kafka em Praga


O ROMANCE O Processo

PERSONAGENS MAIS IMPORTANTES
Joseph K.: Gerente de um banco, muito dedicado ao serviço, autoconfiante, por vezes arrogante, que se deixa conquistar pelas mulheres. Apesar de inteligente é ingénuo, descura a realidade, não sabe escolher quem o possa defender.
– Menina Burstner: Jovem emancipada que tem uma vida secreta. É independente e não liga muito a K, que tem por ela uma forte atração.
– Senhora Grubach: A dona da pensão, pessoa maternal, afeiçoada a K., que parece não lhe ligar nenhuma.
Adjunto do diretor do banco: Pessoa cordata, que algumas vezes acode às falhas de K., não se sabe com que intenções.
– Elsa: Uma jovem que atende as pessoas deitada, e com quem K. se encontra semanalmente.
– O tio de K. de nome Alberto: Preocupa-se com o sobrinho, de quem chegou a ser tutor. Tenta arranjar-lhe um advogado, que ele dispensou. O desleixo de K. desgosta-o bastante.
– Advogado Huld: Um advogado já velho e doente, permanentemente acamado, de quem Leni trata. Todavia continua a controlar os seus processos com muita lucidez.
– Menina Leni: Jovem que trabalha como enfermeira do advogado Huld, a quem despreza. É dominadora e sexualmente insaciável.
– Oficial de diligências: Homem de natureza tíbia, a quem a mulher engana. Presta algumas informações a K.
– A Mulher do oficial de diligências: É amante de um estudante de direito, mas também faz os olhos a K., a quem faculta livros. Tem muitos conhecimentos de justiça.
O Estudante de direito, Berthold: Jovem amante da mulher do oficial de diligências, que já intervém nos processos.
– Tintorelli: Um pintor de arte, sempre rodeado de raparigas. Pinta não só os juízes do tribunal, mas também paisagens, sobretudo charnecas. É inteligente e sabe-se aproveitar das situações.
– Procurador Hasterer: Um homem muito temido e influente.
– O inspetor que prendeu K.: Pessoa arrogante, mal informada, pouco humana, que abusa do poder que tem.
– Os dois guardas que prenderam K.: Homens ao serviço do sistema, prepotentes, não muito bem preparados, que acabam por ser castigados.
– Os dois guardas que executaram K.: Homens ao serviço do sistema, que cumprem eficazmente, ainda que não muito motivados.


               El amor detrás de la metamorfosis – Las mujeres en la vida de Franz Kafka
 As mulheres tinham uma grande importância na vida de Franz Kafka, e este livro O Processo é testemunho disso mesmo: nele ele deixou-se um pouco perder por elas.


BREVE RESUMO DO LIVRO
I
Todo começa quando a Joseph K. a viver num quarto alugado à senhora Grubach, lhe é dada voz de prisão por um inspetor, acompanhado por dois guardas e três jovens funcionários do seu banco. Ele ainda estava na cama, tinha completado 30 anos de idade, não tinha feito qualquer mal, devia ter sido caluniado. É ouvido no quarto da menina Burster, por quem sentia alguma atração, onde o inspetor se tinha instalado. A situação era nebulosa, nem a acusação lhe era comunicada nem os agentes da autoridade pareciam estar bem informados sobre qual era o seu papel. K. fala do seu amigo procurador Hasterer, que o inspetor recusou. Mas pouco depois liberta-o.
Ele costumava trabalhar no banco até às nove horas da noite, uma vez por semana visitava uma rapariga chamada Elsa, que atendia as pessoas deitada. Quis seguidamente tentar justificar-se perante a menina Burster ter ocupado o seu quarto. Ela não estava, e a senhora Grubach, que gostava dele, tentou explicar-lhe onde ela podia estar. Quando a encontrou à noite, ela mostrou-se distante, nada preocupada com aquela intrusão no seu quarto, dando mostras de não lhe ligar nada. Entretanto, aparece por ali um capitão, que parecia ter um caso com ela.   

II
K. foi informado por telefone que no domingo seguinte se realizaria o seu primeiro interrogatório. Deram-lhe o nome da rua e da porta, bastantes intrincados, aos quais teve grande dificuldade em chegar. O tribunal era nos subúrbios numa zona degradada, habitada por pessoas pobres, instalado num edifício degradado. A justiça ficava longe, e ia-se para ela por caminhos escusos. Quando entrou no tribunal protestaram por ter chegado tarde, cinco minutos atrasado. Uma multidão ocupava a sala e foi objeto de protestos. A metade direita da sala era a mais barulhenta. Inicia-se o interrogatório, o juiz de instrução, apoiado por um livrito e fala ao réu e faz-lhe algumas considerações. K. considera-se inocente e quase insulta o magistrado. Queixa-se também do mau tratamento que recebeu dos guardas que o foram prender a casa. À assistência da sala alguém dava instruções para aplaudir ou assobiar, como se eles fossem uns fantoches. O juiz não gostou do seu modo desabrido e desafiante, e no fim disse-lhe que ele perdera a oportunidade que aquele interrogatório lhe podia dar.

III
Na semana seguinte K. esperou dia após dia que fosse convocado para o novo interrogatório, mas ele não veio. Pressupondo que fosse no domingo imediato apresentou-se lá. Porém, é com a mulher do oficial de diligências que se vai encontrar. Afinal, naquele dia não havia audiências. Ela parece simpatizar consigo e até lhe mostra os códigos que ali são seguidos. K. está confiante, e acha que uma condenação para ele só será motivo para riso. Pelo tribunal passou um estudante de direito, que com ela o levaram para as escadas das repartições de justiça, onde estava o juiz de instrução, a quem o estudante deixa a mulher. O oficial de diligências convida K. a visitar as instalações da justiça, que ficavam num sótão. Ele sabe da relação da mulher com o estudante e não parece agradado. K. começa a sentir-se mal com a falta de ar daquele espaço e o oficial de diligências indica-lhe o caminho de saída. Porém, não era fácil sair dali. Ele tem mesmo um encobrimento. Falta ar puro naqueles corredores. Surge mais à frente a ajuda providencial de uma menina ligada à informação pública. É com grande dificuldade que consegue encontrar a porta o tribunal para sair, mas uma vez lá recompõe-se e segue para casa. Na justiça é tudo muito confuso, os seus meandros causam-nos náuseas, uma vez enredados num processo o réu nunca mais se livra dele.  
IV
De novo em casa, K. vai à procura da menina Burstner, por que sente pelo menos uma forte atração. Quer justificar-se perante ela o terem ocupado o seu quarto durante a sua ausência. Contudo, ela mostra-se escusa, mesmo depois de lhe ter mandado cartas para casa e para o emprego. Para se distanciar mais dele, foi substituída no quarto por uma amiga, Montag, por sinal coxa. Faz-lhe algumas perguntas, mas ela não o esclarece muito. Consegue, contudo, apurar que a menina Burstner andará com um capitão, que tem à volta de quarenta anos. K. tem uma discussão com a sr. ª Grubach. Ela é afeiçoada a ele e até chora quando se desentendem. Mas K. insiste em encontrar a menina Burstner, e numa primeira oportunidade vai bater-lhe à porta do quarto. Ninguém atendeu e ele teve de bater de novo mais fortemente. Então abriram a porta e estava lá dentro a menina Sontag com o capitão Lanz, um homem com quem as mulheres se deixavam enfeitiçar.

V
Numa das noites seguintes foi surpreendido no banco pela presença dos guardas Franz e Willem a lastimarem-se por ele se ter queixado deles ao tribunal, levando a que eles tivessem de ser espancados pelo verdugo. K. condoído com a sua situação, que não quis provocar, oferece-se para subornar o verdugo, diz-lhe que eles não são os verdadeiros culpados, mas sim a organização, os altos funcionários, contudo, ele não se deixou subornar e levou-os para uma arrecadação onde lhes bateu sem dó nem piedade por cima do seu tronco nu. Quando no outro dia entrou no banco ouvia-se alguém gritar, perguntou aos contínuos e disseram-lhe era um cão. Ele foi à arrecadação e deu com os guardas a serem espancados pelo verdugo. Mandou os contínuos limpar a porcaria que havia por lá. A justiça segue caminhos tortuosos e por vezes cruéis, a rondar o absurdo.

VI
Numa tarde em que estava muito ocupado veio ali ao banco o tio Alberto. Sabe que lhe estão a instaurar um processo e quer-lhe dar uma ajuda. A sua conversa é prolongada e obscura. Acaba por lhe indicar um advogado que já lhe tinha valido: o dr. Huld. Vai falar com ele e encontra-o na cama, debilitado, porém, mesmo assim mostrou-se interessado pelo caso. Está lá dentro um alto magistrado da Repartição de Justiça. Cá fora alguém parte um prato. Era a Leni, a sua enfermeira, que quis dar apenas um pretexto para K. vir ali e falar com ela. Diz para ele deve confessar tudo e envolvem-se os dois sexualmente. Ela trata com desdém o advogado. No quarto, além dele e do tio está o tal magistrado do Palácio da Justiça, cheio de pressa. Mas K. demora-se com Leni. Quando regressa ao quarto do advogado este está bastante aborrecido por ele ter demorado tanto, perdendo-se assim uma oportunidade importante para apresentar algumas situações ao alto representante da justiça que ali estava. O tio ficou também desiludido e deu-lhe até uma descompostura: o magistrado do Palácio da Justiça foi-se embora; o advogado estava tão debilitado que teve de se deitar; e ele ficou sem lhe poder valer. K. menosprezou ajudas de que se podia socorrer.

VII
Numa manhã de inverno K. vai falar de novo com o advogado. No fundo a Lei não permite a defesa, tolera-a. Os advogados normalmente não podiam assistir aos interrogatórios dos réus, a infraestrutura da justiça não era perfeita. O mais importante eram as relações pessoais dos advogados. Para o advogado o seu caso era difícil, mas apesar de acamado continuava interessado em o defender. K. foi tantas vezes a casa do advogado que acabou por se afeiçoara a Leni. O seu caso era grave, ia demorar meses.
Estava no banco quando é incomodado por um industrial cheio de vivacidade. K. anda preocupado em fazer a sua defesa e não se mostrou disponível para tratar do assunto dele naquele dia. Veio, porém, o diretor-interino, que o recebeu com toda a deferência e tratou do seu assunto. O industrial à saída ainda encontrou de novo K., com quem restabelece o diálogo. Pergunta-lhe se ele não terá algum processo a preocupá-lo. K. fica admirado por ele já saber, mas não tinha sido o diretor-interino a dizê-lo, aquilo já era do domínio público. Para se mostrar prestável disse que quem o ajudara muito num caso fora um tal pintor, Tintorelli.
Vai com o industrial a casa de Tintorelli. Ele vive num pequeno quarto a que chamava atelier, rodeado de raparigas, todas loucas à sua volta como ninfas. Ele põe-nas fora do quarto e fecha-lhes a porta. Estava um tanto frustrado, como é que um pintor de arte o poderia ajudar numa questão de justiça, mas com a conversa que se seguiu verificou que afinal ele sabia muito dos meandros em que movia a justiça e funcionavam os tribunais. Afinal ele era pintor do tribunal, e já o seu pai o fora, conhece bem os juízes, os procuradores e os advogados, que pinta nos seus quadros. Ele até lhe define o tipo de absolvição que pretende escolher: real; aparente; e prorrogatória, e sob elas tece interessantes considerações. Tem o poder de influenciar os juízes. Ao sair ele mostra-lhe um quadro que K. diz gostar, e Tintorelli aproveita para o vender, e a seguir mais três outros – tudo charnecas. Ele não sabe como recusar. Sai por uma porta lateral tendo de passar por cima de três camas. Cá fora as raparigas estavam eufóricas para entrar e ele inexplicavelmente foi parar ao sótão das repartições de justiça.

VIII
Animado com as palavras de Tintorelli vai a casa do advogado dispensar os seus serviços. Mas ele demora sempre muito a receber os seus clientes e encontra lá um comerciante, Block. K. vê a Leni à volta do comerciante e fica enciumado, só se sossegando mais quando vê que ela o trata com a um pobre diabo. Ele chega a dormir lá no quarto da criada à espera de uma audiência. Quando os ficam sozinhos mostra-se muito falador. O seu processo já tem cinco anos, é, portanto, um processo de respeito, e ele não tem apenas um advogado, mas cinco. O advogado chama-o ao seu quarto, ao saber que ele o quer dispensar, mas não dá o caso como perdido. K. diz que não foi tratado com a deferência devida e ele chama ali o comerciante e mostra-lhe como se pode humilhar um cliente. O comerciante ajoelha-se perante ele para ser atendido, e ele fá-lo jurar que só o tem a ele como advogado, que lhe é fiel, humilha-o publicamente. K. não gostou do que viu e disse não estar arrependido de perder a sua colaboração. Leni fecha-lhe a porta com brutalidade, contrariada por ele a ter deixado. Depois do que viu, K. até ficou satisfeito por o ter dispensado (este capítulo não chegou a ser acabado pelo autor).

IX
No banco K. foi encarregado de mostrar os monumentos da cidade a um cliente italiano muito importante. Foi logo aperfeiçoar o seu italiano, conhecer melhor a sua gramática e léxico. Porém, depois de estar à conversa com o cliente verificou que ele só queria ver mesmo a catedral, e nem era necessário preocupar-se com a língua. K. na hora aprazada vai para a catedral, e a Leni telefona-lhe a dizer que ele anda a ser perseguido. Ele vai cumprir a ordem recebida, e quando chega à Praça da Catedral esta encontra-se completamente vazia. Era esquisito, e resolveu entrar na catedral. Ali dentro apenas viu uma velha e um sacristão coxo. Momentos depois apareceu um padre a subir a um púlpito secundário, mas uma vez chegado lá acima não fez nenhum sermão, como seria óbvio. Andou por ali à espera do italiano que não vinha. Depois das onze da manhã um padre aproxima-se de si perguntando-lhe se ele era o acusado. K., surpreendido responde que sim, e o padre diz-lhe que é o capelão da justiça. Fala-lhe da parábola do camponês e da porta da lei. Aconselha-o a não ser precipitado, a não aceitar as opiniões alheias sem refletir. O homem é mais livre quando não está vinculado a ideias dos outros. Diz ainda que não se deve considerar verdade tudo o que se diz, que pode ser apenas necessário. Então K. concluiu que era triste aquela opinião, a da mentira ser transformada em verdade universal. O padre despede-se dele com as seguintes palavras: A justiça não te quer nada: Agarra-te quando vens e larga-te quando partes.

X
N véspera do seu 31º aniversário – cerca das nove horas da noite, quando tudo estava sossegado. Vieram a cada dele dois homens com altos chapéus para lhe aplicarem a justiça. Na rua engancharam-no, um de cada lado, para ele não poder fugir. Para K. não se sentir tão constrangido disseram-lhe para ele escolher o caminho para onde queria seguir. Ele escolhe ir à procura da menina Burstner. Por algum tempo andou atrás dela até que a perder de vista. Pouco depois saíram da cidade e foram parar ao campo a uma zona despovoada, e a seguir a uma pedreira. Ali reparou no nervosismo dos guardas, pois havia qualquer coisa a fazer, e, inexplicavelmente um guarda empurrava essa obrigação para o outro. Entretanto, num andar sobranceiro à pedreira alguém assome à janela: era um juiz para o condenar. Então um homem pôs-lhe as mãos ao pescoço, enquanto o outro lhe enterrou uma faca no coração, fazendo-a rodar. Morreu como um cão: Era como se a vergonha devesse sobreviver-lhe

NOTA: O livro tem ainda um anexo com os capítulos incompletos e as passagens riscadas pelo autor 

Beyond the trial: Investigating Kafka in Jerusalem  
Uma fotografia de parte do seu espólio literária.  Imagine-se o trabalho que deu a escrever os seus livros

APRECIAÇÃO GERAL DO ROMANCE

Este romance decorre em apenas um ano, presume-se que na cidade de Praga. É em grande medida de natureza autobiográfica. Kafka era uma personalidade complexa, debateu-se com muitas incompreensões, tinha dificuldade de comunicação com as pessoas, sobretudo com o pai, não se conseguindo integrar no meio social. Apesar da sua curta vida ele tinha uma noção profunda da condição humana, evidente em muitas reflexões ao longo da sua obra. O tempo é o nosso capital. Perder tempo é perder a vida. Se estou condenado à morte, não estou apenas condenado a morrer, mas obrigado a defender-me até à morte – disse certa vez. O se sentir talvez um pouco rejeitado e se estar no início da Primeira Grande Guerra terão afetado o seu pensamento. Era um revoltado contra aquela sociedade, um crítico do sistema. Não teve êxito em vida com as suas obras. Verificando a sua pouca aceitação, pediu mesmo ao seu amigo, Max Brod, em 1922, que as destruísse após a sua morte. Foi um autor ousado e original, antissistema, incompreendido no seu tempo, que que se tornou um clássico, dos escritores mais influentes de sempre.

Os críticos são unânimes em reconhecer o profundo conhecimento de psicologia de Dostoiévski nos seus livros, onde os psicólogos podem aprender alguma coisa, e o mesmo podemos dizer de Franz Kafka quanto à justiça, que ele pôde analisar de perto e em profundidade. O romance, escrito em 1914, é uma crítica à justiça que então se fazia, uma caricatura dela mesma, retratada como uma burocracia esclerosada e iníqua, movida pela corrupção, pela retórica, pela dialética, por interesses mesquinhos. Este livro, escrito à pressa, com pouca revisão, capítulos não acabados ou não incluídos, muitas partes riscadas, para além de um libelo acusatório ao sistema jurídico, tem atrás de si uma denúncia em tom profético à justiça, que depois se iria fazer entre as duas guerras mundiais, sobretudo nos sistemas totalitários, com uma justiça completamente deformada pelo sistema político e ideológico, que interpretava a lei a seu belo prazer, aviltando multidões de pessoas, a quem esvaziava de cidadania.

Neste romance o acusado não sabe quem o acusa nem de que é acusado; os oficiais de diligências nem sempre estão cientes das suas funções; os procuradores não atinam com o que estão a investigar. Os advogados procuram a verdade que lhes interessa, tentando manobrar os processos conforme as suas conveniências, quer com requerimentos, quer com adiamentos, diligências da mais variada espécie. Os juízes, são influenciados uns pelos outros, daí haver pareceres a que se sentem vinculados, influências a que se não podem furtar. E quando o processo chega ao julgamento, cheio de deturpações, distorções, manipulações, onde a opinião pública também pesa, face ao que é apresentado ao tribunal, o juiz não vai julgar segundo a verdade, mas segundo uma refinada ficção. De justiça, no livro quem sabe mesmo ainda é um pintor, Tintorelli, não porque tenha um verdadeiro conhecimento de jurisprudência, mas porque conhece bem os juízes, a quem pinta os retratos, conhecendo-lhes bem as suas fragilidades, que pode manipular.

Este livro é, pois, uma crítica feroz ao sistema jurídico existente, muito burocrático, movido por influências estranhas à verdade e à justiça, seguindo por caminho que frequentemente nos parecem absurdos. Mesmo nos dias de hoje, estamos em 2019, verifique o leitor a fundo cada um no seu país, até que ponto as sentenças são inteiramente justas, tirando os casos mais óbvios, com uma verdade a que não se pode fugir. Os juízes, que podem não possuir a necessária formação profissional para alguns dos casos, mesmo sendo sérios e incorruptíveis estão à mercê das provas que lhes facultam, que poderão não ter muito a ver com a realidade. Os procuradores podem viciar previamente o processo, as testemunhas são normalmente afetas a uma ou outra parte e dizem só o que convém a essa parte; os réus não são obrigados a responder, e falando podem mentir; os advogados defendem os seus clientes – é a sua obrigação –, não a verdade dos factos, podendo manipular e retardar os processos, prorrogando-os indefinidamente até prescreverem, usar de mil e um artifícios para conseguirem dar como provada a sua «verdade» perante o juiz. Vence o mais hábil e mais forte. Neste aspeto os ricos estão mais bem protegidos que os pobres. O réu está muitas vezes indefeso, sendo fortemente marcado pela opinião pública, nem sempre bem fundamentada.

O Processo é um romance extraordinário, e não porque esteja muito bem escrito e urdido. Kafka ainda não sabia bem como o iria escrever, a alguns capítulos deixou incompletos; a outros apenas os iniciou; arrependeu-se do que escrever em muitas páginas, riscando-as. Ele não teve o tempo necessário para o acabar e corrigir. O livro foi escrito em alemão. Ele usa uma linguagem sóbria, factual, conduzindo a comezinha realidade para cenários surreais, por vezes a rondar o absurdo, que chocam o leitor, dando ênfase ao que ele pretende denunciar. A sua narrativa é original, pois faz ressaltar a verdade do próprio absurdo que é a sua negação, A mensagem que nos deixou neste livro, mesmo inacabado, é já suficiente para nos fazer ver o que ele pretende, ainda que estando por vezes submersa naquele mundo esquisito que ele cria. Um leitor que esteja à espera de uma história narrando um grande amor, ou que o envolva numa grande aventura, pode não o compreender. E é estranho, este excecional livro, que seria excluído de qualquer prémio literário, que dificilmente algum editor aceitaria, serviu para garantir a Franz Kafka a extraordinária importância que teve e tem na literatura universal.
                                                             (Merece uma revisão)
20/10/2019
Martz Inura









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