VICTOR HUGO
Os Miseráveis
Tradução de Silva Vieira
Publicações Europa América (2005)
O
HOMEM
Victor-Marie Hugo nasceu em
Besançon, na França, em 26 de fevereiro de 1802, e faleceu em Paris em 26 de
maio de 1885, aos 83 anos. Era filho de um conde, que depois se tornou general
ao serviço de Napoleão Bonaparte. Passou a sua infância em Paris, mas muitas
vezes acompanhou o pai nas suas andanças pela Europa. Desde cedo revelou os
seus dotes literários. Com apenas quinze anos já recebia um prémio literário da
Academia Francesa, e em 1829, com os irmãos fundava a revista O Conservador Literário. Lia
Chateaubriand, entre outros autores românticos. Distinguiu-se como poeta,
romancista, dramaturgo, ensaísta, fazendo pequenas incursões pela política.
Teve um primeiro desgosto literário com a má aceitação de Hans de Islandia, mas com Cromwell,
nunca mais lhe fugiria o êxito. Casou em 1822 com Adèle Foucher,
conquanto o seu irmão Eugénio estivesse apaixonado por ela, a ponto de enlouquecer
e ser internado num hospício. Mas este amor não ia durar para sempre, e em 1868
ela deixou-o. Ele tinha muitas admiradoras, e passou a andar com a atriz
Juliette Drouet. Em 1841 foi eleito para a Academia Francesa. Era um democrata,
um liberal com ideias humanistas. Em 1948 entra para a política como deputado
por Paris, apoiando a Segunda República e Luís Napoleão, mas este mais tarde
autopromovia-se a imperador contra o que estabelecia a constituição, e ele passou
a oposição, acabando por ter que se exilar em 1851. A morte de sua filha
Leopoldina com o marido, afogados no Rio Sena, fê-lo andar à volta do
espiritismo, escrevendo sobre o assunto As
Mesas moventes de Jersey (1853). De Jersey foi parar a Bruxelas, continuando
a escrever, só regressando a Paris em 1870, com a queda do agora Napoleão III, depois
de um exílio de 18 anos. Quando faleceu deixou 50 000 francos aos pobres, tendo
um enterro com honras nacionais, tinha desaparecido um grande humanista, um grande
cultor da Língua Francesa, o grande difusor do romantismo no seu país. As suas
obras tiveram influências em todas as literaturas europeias.
A
OBRA
A obra de Victor Hugo é variada e
extensa, abrange poesia, romances, peças de teatro, ensaios, cartas: Citemos
aqui algumas:
– Hans de Islande (1822)
– Cromwell (1827) (peça de teatro)
– O Último Dia de um Condenado (1829)
– Nossa Senhor de Paris ou O Corcunda de Notre Dame (1831)
– Hernani (1830) (peça de teatro)
– Lucrécia Borgia (1831)
– Maria Tudor (1831)
– Os Miseráveis (1862)
– Os trabalhadores do Mar (1866)
– O Homem que Ri (1869).
O
ROMANCE, Os Miseráveis
PRINCIPAIS PERSONAGENS
João
Valjean: (também conhecido por Sr.
Madaleno, Último Fauchevent, Sr. Leblanc): É a principal personagem do
romance que percorre todos os seus cinco volumes. É um homem determinado, com muita força e um
grande coração, mas pouco culto. Quando jovem rouba um pão numa padaria, sendo
condenado a cinco anos de prisão, mas com a fugas que depois implementou, e de
que voltou a ser condenado, acabou por estar preso 19 anos. E mesmo liberto era
obrigado a apresentar-se às autoridades pelas cidades em que passasse. Nas pousadas
não o queriam receber, ainda foi o bispo, Myriel que lhe deu guarida, e ele,
ingrato, em paga logo lhe roubou dois castiçais de prata. O generoso que era, perdoou-lhe,
mas nem assim se emendou, voltou a envolver-se num caso com um rapaz, de nome, Gervásio. Foi
perseguido e passou a levar uma vida honesta, talvez para não ser reconhecido, tornando-se proprietário de uma
fábrica de vidro, e mais tarde maire
de Montreuil-sur-mer. Apoiou Fantine, uma mulher abandonada à sua sorte, ficando-lhe com a filha Cosetta. Salvou Fauchelevent, retirando-o debaixo de uma carroça, salvou Javert
de ser fuzilado e Mário de morrer nas “Barricadas”. Morreu velho, com a
presença de Cosetta, a pessoa que mais amava.
Fantine: É uma costureirinha parisiense
que se deixa enganar por um estudante rico, tendo dele uma filha. Para ele
aquilo foi uma simples aventura, não assumindo a paternidade. Com uma criança ilegítima
nos braços, naquele tempo teve de sair de Paris e entregar a filha aos Thénardier, estalajadeiros, que lhe extorquíam dinheiro. Para a sustentar ela vendeu
os seus belos cabelos, os seus dentes de ouro, e por fim caiu na prostituição. Ela
tinha conseguido um emprego na fábrica de Madaleno, mas foi expulsa depois de
uma pequena contenda pela inspeção, por ser mãe solteira. Morreu de
tuberculose, não sem que antes obtivesse a promessa de Valjean de tomar conta
da filha, Cosetta.
Javert: É um inspetor da polícia, muito rígido
e obsessivo, representante da ordem burguesa. Aparece em todo o lado a
perseguir João Valjean. Vai espiar as barricadas dos motins de 1832 e é
descoberto. É JoãoValjean é que o salva, simulando a sua execução. Gera-se
assim um conflito interior entre o dever da lei e a situação miserável das
pessoas, de tal modo que ao fim suicida-se, atirando-se ao Rio Sena.
Cosetta: Filha de Fantine e de Félix Tholomés,
que não a reconheceu. Passa a infância em casa dos ThénardierValjean depois da morte desta vai
buscá-la, e conseguiu que fosse educada no convento de Petit-Pictus. Mais tarde
leva-a para casa. Ela é uma moça sensível e formosa e casa com Mário de
Pontmercy.
Mário Pontmercy: Dá nome a um tomo. Foi criado
pelo avô, velho monarquista, que dificulta as suas relações com o pai, Jorge Pontemercy,
que é um coronel bonapartista, partidário das ideias liberais. Chega a tirar o
curso de direito. Não se dá com o avô, que é demasiado reacionário, e adere aos
revoltosos do ABC nos motins de 1832, em que só pela intervenção de João
Valjean, que foge com ele às costas pelos esgotos da cidade, é que é salvo.
Casa-se com Cosetta.
Thénardier: (também conhecido por Jondrette, Sr. Faboutou, Sr. Thenard): Tem
duas filhas, Eponima e Azelma, e três filhos, um dele Gravoche. É um miserável
que explora Cosetta, a quem vai extorquir dinheiro à mãe. Têm uma pousada que
vai à falência. Vê-se obrigado a ir para Paris, onde se junta à quadrilha do Patron-Minette
para assaltar João Valjean. O pai de Mário, que em Waterloo sentiu ser puxado por ele de
um monte de cadáveres para recolher dele os valores que tivesse, pensa que ele lhe salvou a vida, e é isso
que espalha. Ao fim, já viúvo vai com a filha Azelma para os EUA.
Eponima (Ponina): É a filha mais velha dos Thénardier.
Quando jovem também se aproveita da fraqueza de Cosetta. Andou envolvida nas
falcatruas do pai. Mais tarde apaixona-se por Mário, a ponto de ir com ele até
às “Barricadas”, onde se imagina a morrer com ele. Por acaso acaba por lhe salvar
a vida, quando um projétil a atravessa. Moribunda, pede-lhe que quando morta a
beije na testa, o que ele faz por compaixão.
Gravoche: É o filho mais velho dos Thénardier,
um tanto ignorado por eles, mal-amado. que o põem a tomar conta dos dois filhos
mais novos. Viveu sempre no meio de marginais, não recebendo educação nem
instrução. Quando das “Barricadas” é morto durante a recolha dos cadáveres, às
mãos da Guarda Nacional.
Enjolras: É um jovem de bela aparência, ao
sabor romântico, que se torna líder dos revoltosos do ABC, levantando as
“Barricadas” de Paris de 1832. Ele é sensível às injustiças da sociedade, e
deixa-se inspirar pelo ideário da República, pela liberdade, igualdade e
fraternidade. Após a queda das “Barricadas” é preso pela Guarda Nacional e
executado com Grantaire.
O Bispo Digne (Charles François
Bienvenu): É um
prelado extremoso e pio, que um encontro casual com Napoleão Bonaparte leva a
bispo. Expressa a figura de um homem de Deus, compreensivo e caridoso,
desapegado do dinheiro e do poder. É o representante de uma Nova Igreja, menos
apegada aos bens materiais e ao poder, cultivando em alto grau o humanismo.
Gervásio: Rapaz que deixa cair uma moeda de
40 cêntimos, que João Valjean cobre com uma bota, não a restituindo ao rapaz.
Mais tarde ele se arrepende do facto.
Félix Tholomés: É o estudante rico e irresponsável,
que teve uma aventura com Fantine, considerando aquele caso como um encontro
passageiro, deixando-a com uma criança nos braços numa situação desesperada. É o pai biológico de
Cosetta.
Fauchelevent: É o homem a quem João Valjean
salva a vida, quando ficou debaixo de uma carroça. Tendo ido à falência, foi
mais tarde jardineiro no Convento de Petit-Pictu, onde deu guarida a João Valjean
e a Cosetta. Deixou ao seu salvador o seu próprio nome, pois como João Valjean
ele seria logo preso.
Coronel George Pontmercy: É o pai de Mário. Foi oficial do
exército de Napoleão. Ferido em Waterloo, pensa erroneamente que Thénardier lhe
salvou a vida, quando ele só o quis roubar. Deixa ao morrer uma carta a agradecer
aquela ajuda, dizendo ainda ao filho que não pôde estar mais perto dele porque
o avô não o permitiu.
Sr.
Babeuf: É um tesoureiro, que um notário levou à falência. Grande amante dos
livros, teve de os vender no fim da vida para sobreviver. Ajudou Mário a
encontrar o pai, coronel Pontmercy. Morreu nas “Barricadas”, quando se ofereceu
para ir levantar a bandeira vermelha e foi atingido pela metralha.
Confeyrac, Combeferre, Laigle (este último
também conhecido por Bossouet), três participantes bastante ativos nas “Barricadas”,
sob o comando de Enjolras.
Irmã
Simplícia: Ela cuida de Fantine, e engana Javert, para que ele não prenda João
Valjean, sob o pretexto de que nunca mentiu na sua vida.
Boulatrouelle:
Um antigo forçado da quadrilha dos Patron-Minette, que desconfiava que João
Valjean tinha um tesouro escondido numa floresta.
Senhor Gillenormand: Era o avô de Mário, muito
conservador e monarquista, impedia o neto de encontrar-se com o pai, por este
ter sido oficial do Exército de Napoleão e ter ideias revolucionárias. Discute frequentemente
com o neto, e só no fim da vida se mostra mais reconciliado com ele. Está com
uma filha, também chamada Senhora Gillenormand, que é meia-irmã da mãe de Cosetta, já
falecida.
Tenente Teódulo: Sobrinho da Senhora Gillenormand,
que o queria para substituir Mário, e não conseguiu.
Baptistine: Irmã do bispo Myriel
Maglória: Criada do bispo.
Os
Amigos do ABC: Grupo de estudantes revolucionários associados às “Barricadas
de 5 e 6 de junho de 1832, liderado por Enjolras. Dele faziam parte, entre
outros, Confeyrac, Prouvaire, Combeferre, Freuilly, Laigle, também conhecido
por Boussuet.
Os Patron-Minette: Quadrilha de Paris que ajudou Thénardier a assaltar
João Valjean. Era chefiada por Montparnasse, e incluía homens como Claquesou,
Babet e Gueulemer.
BREVE
RESUMO DO ROMANCE
Volume I: Fantine
Jean Valjean acaba de cumprir 19
anos nas galés: cinco por roubar um pão para matar a fome a uma irmã e a sete
sobrinhos, e os restantes por se ter envolvido em várias fugas. Uma vez libertado cruza-se com Fantine, outra infeliz, que lhe pede ajuda. Ao
chegar a cada cidade tem de se apresentar às autoridades. Não
o aceitam nos albergues. É recebido em casa do Bispo Digne, mas em vez de lhe
ficar grato, rouba-lhe dois castiçais de prata, e tendo-lhe este perdoado,
ainda vai subtrair 40 cêntimos a um rapaz. É de novo acusado e tem de fugir.
Muda para outro ponto de França, onde assume o papel de bom, consegue prosperar
na indústria do vidro, é bondoso e respeitado, tornando-se maire de Montreil. Ainda ajuda a salvar Fauchelevent, que fica
debaixo de uma carroça. O inspetor Javert, vendo-o com tanta força desconfia
dele ser João Valjean. Entretanto, Fantine, que tinha deixado a sua filha
Cosetta aos Thénardier, tem uma altercação e é condenada a seis meses de
prisão. Jean Valjean, sendo ali maire,
intercede por ela, e mais tarde vendo o seu grave estado de saúde promete
ajudar a tomar conta da filha, caso seja necessário. Javert anda à procura dele,
e um dia é apanhado um ladrão de maças, chamado Champmathieu, a quem acusam de
ser João Valjean, porém o maire,
vendo aquela injustiça, depois de pensar muito no caso acusa-se a ele próprio ao
tribunal e é levado preso por Javert para a prisão, de onde à noite foge.
Volume II: Cosetta
Este volume começa com uma bela
descrição do que foi a Batalha de Waterloo. É dito que Thénardier salvou o pai
de Mário, mas ele apenas o quis roubar no final da batalha, quando tentava
"limpar" os mortos. Javert continua a perseguição a João Valjean, mas ele
consegue fugir para Paris e enterrar uma avultada soma de dinheiro num bosque,
fruto do seu trabalho. Entretanto, acaba por ser preso e condenado à morte, de
que que depois foi comutado para prisão perpétua. É enviado para as galés, mas
faz-se cair delas e passar-se por afogado. Mais uma vez fica livre para cumprir
a promessa que fez a Fantine de lhe cuidar da filha Cosetta. Vai a Montfermeil
na véspera de Natal e aloja-se na estalagem dos Thénardier, onde confirma os
maus tratos que dão à menina, até as filhas Eponima e Azelma a tratam mal. Na
manhã seguinte negoceia levar Cosetta à mãe por 1500 francos e parte para Paris.
Mas é de novo perseguido por Javert e tem de se refugiar no casebre de Gorbeau.
Mesmo ali é descoberto por Javert, e tem de fugir de novo, indo refugiar-se
no convento de Petit-Pictus, onde por sorte está Fauchelevent, que salvara, ao
tirá-lo debaixo de uma carroça. Ele é ali jardineiro, e consegue dar-lhe
guarida e internar Cosetta no convento. Passou a ser o Novo Fauchelevent. O
autor faz aqui um ensaio sobre o sistema monástico e ainda nos delicia com a história
da freira que quis ficar enterrada na igreja, quase levando João Valjean a ser
enterrado vivo no cemitério em vez dela.
Volume III: Mário
Este volume começa por fazer uma
digressão por Paris, desenvolvendo aqui longos ensaios sociológicos
sobre a cidade, a burguesia, a família, a marginalidade, e o espírito de
revolta que se tinha gerado. Só muito depois se debruça sobre Mário, que tem
17 anos quando recebe uma carta do pai, Coronel Pontmercy, a pedir para prestar
ajuda a Thénardier, um sargento que lhe salvara a vida em Waterloo,
desconhecendo que este era apenas um ladrão que andava a saquear os cadáveres. Soube
que era filho do coronel Montmercy, a quem o avô Gillenormand procurara
desviar, por o considerar bonapartista. É então que ele conhece o tesoureiro
Mabeuf lhe dá a conhecer melhor o pai. Revoltado, Mário adere aos amigos do ABC,
torna-se também um revolucionário. Os Thénardier vivem agora em Paris sob o
nome de Jondrette, e Mário encontra-os lá. É por esta altura que conhece
Cosetta nos Jardins do Luxemburgo, então com quinze anos, por quem se apaixona.
Mais tarde encontra-se com Eponima na rua, esfarrapada e cheia de fome a pedir-lhe
dinheiro. Ela está apaixonada por ele, mostrando-lhe até que já sabe ler. Ele
dá-lhe cinco francos e pede-lhe para ela saber da morada de Cosetta. Eponima,
ainda que relutante, faz esta diligência. Thénardier (agora Londrette), fica a
saber onde vive João Valjean, e com a colaboração dos Patron-Minette vai tentar
assaltá-lo. Porém, Mário descobre a sua intenção e comunica o facto a Javert,
que apanha alguns ladrões. João Valjean conseguiu escapar. Mário acaba por
saber que afinal o Jondrette é o Thenardier, que salvou a vida do pai e fica
com um dilema: não o quer acusar.
Volume IV: Idílio da Rua Plumet e a
Epopeia da Rua Saint-Denis
Este volume, depois de mais umas
páginas de história, leva-nos para as barricadas de 1832, para a rua Plumet,
onde vive João Valjean e Cosetta, já saída do convento, e a Rua de S. Dinis,
onde se vão desencadear as célebres barricadas. Mário e Cosetta declaram-se. A
quadrilha dos Patron-Minette tenta assaltar a casa de Jean Valjean, mas Epónima
ameaça gritar e acordar todo o bairro, obrigando-os a desistir do seu intento.
João Valjean pensa então levar Cosetta para Inglaterra, Mário pede ao
avô, Gillenormant para casar com ela, mas ele apenas condescende em que ele a
faça sua amante. Mário, desgostoso, sai de casa. João Valjean recebe um bilhete,
dizendo para ele mudar de casa, e ele assim o faz, receando qualquer assalto.
muda para a Rua do Homem Armado. Em 5 de junho, quando da morte do general
Lamarque, gera-se uma revolta em Paris, levada a cabo pelos amigos do ABC. O
grupo é comandado por Enjolras e tem aderentes com Gravoche, Confeyrac,
Combeferre, e o apoio de operários e estudantes pobres. Levantam barricadas na
Rua Chavrerier, junto da loja do Corinto. Aparece ali Janvert como espião, que
descoberto é amarrado a uma árvore. Mário está ali desesperado, pois não tinha
encontrado Cosetta na Rua Plumet. Entretanto, aparece ali Eponima vestida de
homem, com uma carta dela a dizer que agora esta a viver na Rua do Homem Armado. A
luta prossegue e Eponima morre ao ser atingida por um projétil que se destinava
a Mário. Ela no fundo contentava-se em morrer ali ao lado dele, e pede-lhe que
lhe dê um beijo na testa quando isto acontecer. É então que Mário lê a carta e
responde enviando um bilhete através de Gravoche, dizendo que vai morrer ali
nas barricadas. João Valjean lê a carta, pega numa arma e munições e dirige-se
para lá.
Volume V: João Valjean
Neste volume é que João Valjean vai
mostrar-se recuperado, adquirindo dotes de verdadeira humanidade. Ao chegar às
barricadas ele salva a vida de um homem, mas a situação é grave, Gravoche morria
pouco depois atingido pelos projéteis. João Valjean vendo a situação periclitante de Javert, pede ao
grupo ara ele próprio fazer justiça, leva-o para um local afastado,
desamarra-o, dá um disparo para o ar a simular a execução e diz para ele fugir.
Quando volta a situação está in extremis,
Enjolras é capturado e fuzilado pela Guarda Nacional. João Valjean consegue
apanhar Mário bastante ferido e foge dali com ele às costas para os esgotos de
Paris. É difícil sair de lá, e quando encontra uma melhor saída, por azar está
lá Thénardier, que lhe exige uma avultada soma de dinheiro para abrir a tampa
dos esgotos. Por fim, lá o consegue convencer a abrir. Mas, pura coincidência,
está ali Javert para o prender. João Valjean pede-lhe então para antes disso passar
por casa de Gillenormand, avô de Mário, para ele cuidar dele. Javert fica cá fora com o problema de
consciência de prender João Valjean, desvairado entre o direito e o dever,
deita-se a afogar ao Rio Sena. Lá em casa Mário recupera. O avô ainda é vivo.
Mário casa-se com Cosetta, e no dia seguinte João Valjean confessa-lhe que é um
foragido acossado pela lei. Este fica altamente desiludido e tem de arranjar
uma maneira de gradualmente o afastar dali. Mas Thénardier é pérfido, e vem
mais tarde a casa de Mário para lhe vender o segredo de que João Valjean é um
forçado evadido. Receando chantagens, e porque ele lhe salvara o pai,
oferece-lhe uma grande soma de dinheiro para ele ir para a América com Azelma. Mais
tarde Cosetta e Mário vão visitar João Valjean à sua nova moradia. Ele já está
velho, e sente-se feliz por os ver ali juntos. Recorda-lhe a mãe, Fantine. O
seu maior orgulho é Cosetta ser a sua filha adotiva. Morrer nada custa. O que é horrível é não ter vivido! Foi o que ele disse. Ele passou a
vida a lutar pela liberdade, numa sociedade que não reconhecia o direito aos
pobres, aos mais fracos, às mulheres, à sua maneira foi um revolucionário.
COMENTÁRIO GERAL SOBRE O ROMANCE
O romance Os Miseráveis é uma obra gigantesca, não só em tamanho como em
elaboração, compreendendo cinco volumes. A narrativa incide sobre o início do século
XIX, vai de 1815, quando da Batalha de Waterloo, até aos motins de Paris de 5 e
6 de junho de 1832, prolongando-se até ao casamento de Cosetta com Mário, em
1833. Pelo meio o autor introduz inúmeros ensaios sobre os mais diversos temas,
desde a cultura à religião, desde os ideais políticos ao sistema de justiça em
vigor em França, desde o regime monástico à rede de esgotos de Paris, faz
longos apontamentos históricos e uma bela descrição da Batalha de Waterloo, tece
diversas observações sobre aquela sociedade, incidindo mais nos pobres, nos
desfavorecidos, nos marginais, enfim, nos miseráveis. Representa bem Paris daquela época, tem muita acção, daí ter dado origem a vários filmes e musicais. Fala das cloacas que se
podem formar nas grandes cidades, antros de miséria e depravação, a que é preciso acudir. Tinha já uma visão sociológica do mundo. Ele dá a voz
a João Valjean, acossado pela polícia, uma das vítimas daquele sistema de justiça, ignóbil.
Esta obra está integrada no
romantismo, embora tenha já muita inspiração realista, imiscuindo-se na
História da França daquela época. O amor platónico reaparece no romance,
insiste pois, na liberdade, no individualismo, volta aos cenários cemiteriais, insiste nos
temas religiosos, no sentimentalismo, no idealismo, no nacionalismo, e há
coincidências dramáticas que hoje nos poderão parecer excessivas. As
personagens têm conotações fantasiosas à Batalha de Waterloo; Javert está em
todo o lado, até parece que em Paris só há um inspetor; assim como Thénardier,
que até quando João Valjean aparece a sair num boeiro dos esgotos da cidade,
que são milhares, está lá à sua espera para lhe abrir a tampa a troco de
dinheiro. Estas coincidências parecem tirar-lhe verosimilhança. Os longos
ensaios que faz, na altura talvez para educar o povo, ignorante, tira o foco na
narrativa principal, podendo aborrecer alguns leitores de hoje, mas não os
antigos, que estavam ávidos deste tipo de leituras. À sua maneira ele queria
tirar o povo do obscurantismo, criar um homem mais fraterno, lutar por um
humanismo profundo, com menos preconceitos, por uma sociedade mais igualitária, com
menos excluídos.
Sobre a Batalha de Waterloo
revela-se um verdadeiro mestre a descrever um campo de batalha, e isto só se
compreende sendo ele filho de um general e toda a vida andar a ouvir falar de
movimentação de tropas, uso da artilharia e da cavalaria, explanações sobre táticas
de guerra, relatos sobre batalhas, e tudo o que lhe andava associado. Mostra-se
imparcial quando fala da Inglaterra, que com Wellington venceu esta batalha,
mas parece-nos endeusar demais os valores da guerra, descobrindo-lhe beleza e
grandeza, quando ela é aterradora, traz a morte, o sofrimento e a depravação.
E talvez exagere na admiração a Napoleão Bonaparte, que sendo um génio na arte
da guerra, e estando ao lado da revolução dos povos, se deixou encantar
demasiado pela grandeza da França, e seduzir pela vá glória do poder, ignorando
os milhares de mortos e estropiados que aquela guerra deixou atrás de si por
toda a Europa. A verdadeira glória reside no fulgor da Humanidade, não da
pujança de um só povo, de uma só nação, de um só homem. De qualquer modo, o
autor tem uma noção bastante precisa do que significou aquela guerra, cujo
desfecho atribui à Providência, Alexandre Herculano por cá também explorava
esta ideia. Ele tem a noção de que a revolução, na sua ambição monopolizadora
tinha ido demasiado longe, e que a Europa queria experimentar novos caminhos, entrar
num período de paz, consolidando as conquistas socais já feitas, que estavam
agora a falhar.
A linguagem que o autor utiliza neste livros é fluente,
reflexiva, sem grandes artificialismos, não fosse ela destinada ao povo
humilde. É uma obra que cultiva os valores morais, um alerta para justiça
iníqua da época, para a situação calamitosa dos pobres, uma chamada de atenção
para a desigualdade de direitos das mulheres, para o abandono das crianças, a falta
de instrução do povo, contra a ostentação da igreja e a prepotência das
autoridades, combate em várias frentes a moral e a justiça burguesas –, tudo,
dotes de humanidade superiores aos de Napoleão Bonaparte em fazer a guerra. Ele
consegue através de uma narrativa exuberante recriar a cidade de Paris daquele
princípio do século XIX, fazendo-nos um relato bastante completo do que era aquela
sociedade, descrevendo-nos os seus usos e costumes, as suas carências e aspirações,
incidindo sobretudo nas classes mais desfavorecidas, nos pobres, nos injustamente
condenados, nos marginais, nos meninos de rua, gente de quem a maioria dos autores se abstinha
de escrever. Esta obra influenciou os maiores escritores do seu tempo, podemos
citar como exemplo repentino Almeida Garrett em Portugal, Joseph Conrad na
Inglaterra, Leão Tolstoi na Rússia, Truman Capote nos Estados Unidos da América. Os
Miseráveis de Victor Hugo, possa ser alvo de críticas, é um livro
grandioso, cheio de ensinamentos, dos melhores romances de sempre.
26/06/2018
Martz Inura
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