sábado, 18 de fevereiro de 2023

FREDRIK BACKMAN


Um Homem Chamado Ove
Fredrik Backman
Tradução de Alberto Gomes
Editorial Presença (2016)
 

 O HOMEM                

       Fredrik Backman nasceu a 2 de junho de 1981 em Helsinborg, Scania, na Suécia. De início escreveu em jornais como o Helsinborgs Dagblad e o Moore Magazine, depois entusiasmou-se com a criação de blogues na Internet, onde alcançou grandes audiências. Ele tem uma cultura variada, o conhecimento da vida das pessoas comuns, e uma grande capacidade discursiva. Tornou-se famoso na Blogosfera, e em 2012 ousou entrar na área do romance, escrevendo Um Homem Chamado Ove, que teve sucesso imediato, sendo traduzido em mais de trinta línguas, sendo um bestseller. Em 2015 foi adaptado ao cinema. Os seus livros têm tido muita aceitação, sendo dos mais vendidos no seu país. Casou com Neda, tem dois filhos. É um escritor jovem, do qual ainda há muito a esperar.

A OBRA


A sua obra, tem muitos textos aproveitáveis nos jornais e na Internet, mas destacam-se aqui os seus romances:

Um Homem Chamado Ove (2012)
Coisas que o Meu Filho Precisa de Saber acerca do Mundo (2012 na Suécia, 2019 na GB)
A Minha Avó Pede Desculpa (2015
Britt-Marie Esteve Aqui (2014 na Suécia e 2016 na GB)
E a Cada Manhã o Caminho de Casa fica Mais Longe (2016)
Beartown (Também designado The Scandal) (2017)
The Deal of a Lifetime (2017)
Us Against You (2018)
Gente Ansiosa (2019 na Suécia, 2020 na GB)
The Winners (2022) [Beartown, Us Against You e The Winners constituem uma trilogia]



 

O LIVRO: UM HOMEM CHAMADO OVE:

 

a.       PERSONAGENS PRINCIPAIS



  Ove: a personagem principal do romance. Para alguns o pior vizinho do mundo. Um homem mal-humorado que perdeu cedo a mãe, e mais tarde o pai, e a esposa, Sonja. Tem 59 anos, foi aposentado quase à força, sente-se estranhado e perdeu o amor à vida. Herdou um Saab, que tem em muito estimação. É um tradicionalista, pouco dado à mudança. Sempre deprimido, pensou em se suicidar diversas vezes, mas pequenas incidentes com os vizinhos o vão impedir, prendendo-o à vida, que ao ser mais vivida se tornou mais suportável.
   Sonja: a falecida esposa, uma mulher muito bonita e conversadeira, que lhe fazia muita companhia, preenchendo a sua vida. Era professora. Teve um acidente que a mandou para uma cadeira rodas. Mesmo tendo já desaparecido, está muito presente na mente do marido, que a continuou a amar. 

  Parvaneh: a vizinha de Ove, de ascendência iraniana, tagarela, que tem paciência para o aturar, acabando por o compreender e ter algum domíno sobre ele. Está grávida e tem duas filhas.
  Patrick: marido de Parvaneth, consultor, com quem Ove não simpatiza, apelidando-o de o Esgalgado. Partiu uma perna em casa ao cair de um escadote

    Rune: um amigo de Ove, com quem este tem alguns desentendimentos, tornando-se seu inimigo. Mais tarde aparece com a doença de Alzheimer, e a sua relação vai mudar. Querem-no internar num lar.
    Anita: mulher de Rune, que se opõe ao seu internamento. 

    Anders: um vizinho vivendo do lado oposto da rua, dono de uma empresa de reboques. Tem um Audi, carro estrangeiro, que ele não vê com bons olhos a circular na Suécia. 
    Blond Weed: a namorada com quem Anders se anda a pavonear, cujo nome desconhece, e lhe dá esta alcunha brejeira. 

    Adrian: o carteiro do bairro, com quem Ove tem vários relacionamentos. 
    Jimmy: um vizinho obeso bem disposto com quem Ove convive. 
    Mirsad: jovem de 20 anos, bastante inseguro, homossexual. Ove, talvez por isso não simpatiza com ele, porém, quando o pai o expulsa da sua convivência, acaba por o receber na sua casa
   Lena: uma repórter local que procura obter uma entrevista de Ove, que salvou uma pessoa de morrer debaixo de um comboio. Afinal ele tinha um fundo bom. 
   O Gato: um bicho inicialmente detestado por Ove, que acaba por ser resgatado por ele e Parvaneh de morrer congelado na neve. Aquela deixou-o em cada de Ove a recuperar, e ele deixou que o animal ali ficasse minorando a sua solidão.


b.                   BREVE RESUMO

        O livro narra a vida de um homem chamado Ove que vive amargurado na sua velha casa. É um tanto antiquado, confunde um iPad com um computador, é contra as marcas de carro estrangeiras, não confia na Internet, não gosta de pagar impostos. Um dia faz uma ronda ao bairro bastante, exaltado por uma questão de estacionamento de um carro, e os vizinhos têm de vir cá fora acalmá-lo. Aborrece-se então com eles e fecha-se em casa, evitando quaisquer contactos. Por vezes sente-se invadido pela tristeza e sai às de carro, mas demasiado devagar, arreliando os outros condutores. É antipático no seu relacionamento com as pessoas, mesmo com Parvaneh, uma senhora de origem iraniana, compreensiva com a sua situação, que está grávida. Ainda carregava o peso da morte da mãe e do pai, e mais recentemente a da mulher, passam-no à reforma a contragosto – a sua vida é insípida. É então que lhe vem a primeira vez à cabeça suicidar-se, quando se prepara para consertar uma velha bicicleta. Tem mais uma conversa antipática com Parvaneh e o marido Patrick, a quem chama Esgalgado. Amolgaram-lhe a caixa do correio num acidente quando vieram para ali, e isto não foi em abono deles. Vai ter que restaurar a casa, que fizera com as suas próprias mãos. Entretanto, o vizinho Patrick cai de um escadote ao abrir uma janela, e a mulher vem pedir-lhe para o levar de carro hospital, mas ele esta maldisposto e não se mostra muito solícito e a ajudar. Ainda se vai aborrecer com Parvaneh, que é persistente e o convence a levá-lo, embora siga sempre mal-humorado. As duas filhas dela mostram-se brincalhonas dentro do carro, mas ele não lhes dá grande importância, não se sente com cara de palhaço. Está abatido e pensa em suicidar-se mais uma vez.

        Ove dá consigo a recordar a sua falecida mulher, Sonja, quando a encontroou num comboio. Ela gostava de falar e ele de estar calado. Na estação não tem jeito nenhum para tirar um bilhete de comboio com o seu cartão na máquina, porém, quando um homem cai à linha férrea vai lá retirá-lo com rapidez, salvando-lhe a vida. Faz uma viagem de carro atribulada na neve, e um gato aparece mais uma vez a rondar-lhe a casa. Há o evocar de um passeio com Sonja e o pai, que conduzia uma carrinha de caixa aberta. Ele e Parvaneh encontram o gato quase congelado na neve, conseguem salvá-lo e ela leva-o para casa dele, onde o deixa pousado num manta a recuperar. Ele não o quer por ali, mas como a falecida mulher gostava muito de um gato chamado Ernest, acabou por ficar com ele. Sentado no seu Saab, olha o casal Rune e Anita, que foram seus padrinhos de casamento. Estão a pensar em internar Rune num lar por ele sofrer de Alzheimer. Já fala com o gato e é procurado pela repórter, Lena, que o quer entrevistar por ele ter salvado a vida a um homem que caiu à via-férrea. Ele não dá importância ao caso. Volta a recordar-se de Sonja, sua falecida mulher, que teve um acidente num autocarro. Ficou inválida, por uma questão de burocracia não faziam a rampa para ela entrar com a cadeira de rodas na escola e ele foi lá e fez uma sozinho à sua custa. Ove vai buscar Patrick ao hospital que vem com a perna engessada, e leva consigo o gato, Parvaneh e as filhas, que o desenham.

        Uns dias depois, Ove fica de novo tão deprimido que pensa em suicidar-se, tomando uns comprimidos que sobraram de Sonja. Deixa sair o gato, mas o animal volta para casa ao ouvi ladrar ladrarum cão. O casal da frente chama por ele e com este incidente volta a fechar o frasco. É Anita que lhe vem pedir uma chapa "ordenada", que ele corrige para ondulada. Um jovem vem-lhe trazer uma carta, fora aluno da sua mulher, e precisa que lhe ajudem a reparar uma bicicleta. Anda a trabalhar para comprar um Renault e não se mostra muito solícito. Evoca a explicação de Sonja de ele se zangar com Rune, só porque o amigo comprou um BMW. Repara afinal a bicicleta ao rapaz. Não gosta do efeminado Mirsad, é preconceituoso que tem em relação aos homossexuais. Arranja tempo para fazer uma visita ao túmulo de sua mulher, Sonja, pedindo-lhe desculpa pelo atraso, recordando os fins dela, morta de cancro. Chega a casa nesse dia e tem um ataque de solidão. Vai então ao sótão buscar uma espingarda que pertencera ao pai de Sonja. Detesta homens de camisa branca, ou seja, os médicos e enfermeiros. O gato tinha saído, programa mais uma vez suicidar-se, mas entretanto chega a intrusiva Parvaneh a bater-lhe à porta e esconde a arma. Uma parelha de camisas-brancas vem ali a casa de Rune tratá-lo. Ove conversa com Patrick, e pede-lhe para lhe arranjar um reboque e atravessa o seu carro para não deixar sair a ambulância que viera buscar Rune, por aquele sítio não uam passar. Eles vão levar Rune dali e Ove põe-se a chorar.

        Está um farrapo humano. É então que decide mesmo suicidar-se. Escreve uma carta a Parvaneh, com quem, apesar de tudo se sente mais ligado, a explicar como deseja ser sepultado. Vai-se suicidar de camisola e cuecas para não sujar a roupa de sangue, pois quer ir bem vestido para a cova, onde repousa Sonja. Deixa mesmo dinheiro para o funeral. Por casualidade é interrompido por Adrian e Mirsad, que lhe vêm ali pedir ajuda, porque o pai de Mirsad pô-lo fora de casa. Adrian disse que talvez fosse bom ele deixá-lo ali dormir por uma noite. Repara numa foto da mulher e baixa a arma. Mais uma vez estragam os seus planos para se suicidar. Aceita a custo que o rapaz fique ali a viver com ele uns dias, enquanto Rune parece que vai ser internado. Entretanto, a polícia vem ali prender três jovens drogados e falar com Ove para ele tirar o carro e o reboque que ele estacionou ali a atravancar a rua, mas ele já os tinha retirado e vai de novo à campa de Sonja dizer-lhe que ainda não vai poder ir para junto dela. Querem internar Rune, mas a mulher, Anita, consegue opor-se aos três enfermeiros. Com o tempo Ove sente-se mais envolvido com a vizinhança e com o caso de Rune. Todavia, estava a pensar em pôr Mirsad fora da sua casa, ele era um larilas. As suas relações com Jimmy, um vizinho gordo, e com Mirsad, entretanto melhoraram. Ele com a morte da mulher ficara muito abalado, parara de viver, mas arrebitara. Um dia vai mesmo com eles no seu carro comprar um iPad. Mais tarde é abalado com um problema cardíaco, tendo de ser levado ao hospital, e possivelmente operado, Parvaneh opõe-se, diz que ele não tem nada, não tem jeitinho nenhum para morrer. Levam-no a um médico que o medica e diz que ele tem o coração dilatado, pode durar meses ou, com sorte, anos. E assim regressa a casa e se chega ao epílogo.  

 

Ove, Parvaneh e as filhas no filme Um Homem Chamado Otto de Hannes Holm, com Tom Hanks

 

c.        COMENTÁRIO GERAL

       

        O livro seduz-nos por dar relevância à vida de um homem amargurado e solitário, feita de pequenas coisas, de insignificâncias que acabam por ser decisivas, descrevendo-nos situações por vezes caricatas. Tem um discurso fluente e explora a sátira, conseguindo, pois, encontrar muito que contar de uma pessoa que à primeira vista não teria muita história. A narrativa é quase uma fábula, usa e abusa da ironia e do sarcasmo. Ove está permanentemente mal-humorado, é por vezes contraditório, patético, enfadonho, contudo, a sua vida, que à partida nos parece com pouco sentido, tem por trás dela muito por explicar, muita humanidade merecedora de ser revelada.

        Mas voltemos agora àquilo que este romance tem de menos bom. Há quem considere este livro vulgar, muito vago, e até superficial, para agradar ao público atual. A sua estrutura é minimalista, e as personagens, se lhe excetuarmos Ove e Parvaneh, pouco ricas. Podemos também considerá-lo repetitivo, sem uma linguagem grandiosa, porém, é curioso que o autor consegue mesmo assim torná-lo aliciante, revelando-lhe um conteúdo desconcertante, ao dar várias nuances às suas situações, como sejam a sua predisposição para o suicídio, propósito sempre frustrado, bem como o seu visceral mau humor e ar malvado, que visto com a compreensão de Parvaneh, é apenas superficial.

        O autor vendeu, e rapidamente, milhões de exemplares deste livro, o seu êxito comercial foi enorme, contudo, este facto não corresponde ao real valor da obra, que, embora interessante, está obviamente sobrevalorizada. Hoje o mundo digital tende a sobrepor-se ao mundo real, as redes sociais e o mediatismo podem distorcer o valor dos livros, e não só. Imaginemos a tão pouco aceitação inicial das obras de Franz Kafka, James Joyce, Marcel Proust, Vladimir Nabokov, Stephen King, Agatha Christie, e mesmo J. K. Rowling, entre muitos outros. Os editores nem sequer aceitaram editar as suas primeiras obras, deram-lhe várias negas, alguns nem as conseguiram publicar em vida, e elas eram verdadeiras obras-primas.

        Um Homem Chamado Ove foi, pois, muito badalado nas redes sociais, onde o autor tem muita visibilidade cibernética, deu dinheiro a ganhar a muita gente, não falta para aí quem diga bem dele. Não sendo na nossa modesta opinião um romance extraordinário, a sua narrativa surpreende-nos apesar de tudo pelo seu realismo patético, pela sua narrativa fluída e divertida, conseguindo descrever-nos a pardacenta e conturbada vida de Ove com assomos de originalidade. Há um sentido profundo por trás de toda a sua simplicidade narrativa: o ser humano nunca é inteiramente mau, e por traz da sua aparente malvadez há sempre uma explicação de natureza psíquica e biológica. Fredrik Backman continua a escrever, é um jovem, e ainda nos pode vir a surpreender a com uma verdadeira obra-prima. 



        17/02/2023
        Martz Inura


 

quarta-feira, 8 de julho de 2020

JAMES JOYCE II



James Joyce
Ulisses
Tradução e Notas de João da Palma-Ferreira
EDIÇÃO «LIVROS DO BRASIL» LISBOA (1989) (844 P.)

 

O HOMEM

James Augustine Aloysius Joyce nasceu em 02 de fevereiro de 1882 nos arredores de Dublin. A sua família, da classe média, era católica, e matriculou-o numa escola jesuíta. Porém, foi afetada por dificuldades económicas e ele teve que sair e frequentar escolas mais modestas até o inscreverem na recém-criada "University College Dublin". Gostava de música e até cantava bem, era tenor. Acabou por se formar em 1902 e emigrou para Paris a fim de cursar medicina. Porém a mãe morreu, voltou à Irlanda e esta ambição esfriou. Era um rebelde, bebia muito e chegou a ser preso por má conduta. Por fim acomodou-se, casou com Norma Barnacle, e em 1904 seguiu para Trieste a fim de lecionar Inglês. Mas aqui também iria ter dificuldades, de imediato não encontrou lugar naquela cidade e teve que ir para Pola. Desta estadia fez amizade com alguns dos seus discípulos, entre os quais, Italo Svevo. Em 1906 seguiu para Roma com a sua mulher. Entre 1915 e 1919 viveu em Zurique. Regressa a Paris em 1920, onde encontrou amigos como Ezra Pound e Harriet Shaw Weaver. E mais do que estes, Eugene e Maria Jolas, senhora que, vendo as suas qualidades de escritor, começou a ajudá-lo economicamente, permitindo que ele se dedicasse a tempo inteiro à escrita. Com o estalar da Segunda Guerra Mundial partiu para Zurique. Por várias vezes voltou a Dublin, algumas das quais para tentar publicar os seus primeiros livros, que estavam a ser recusados. De formação jesuítica, saiu zangado daquela instituição, porém, nunca negou a importância que ela teve na sua formação. Ainda não sei o que os jesuítas fazem a estes moços, que também em Portugal, e só para citar um exemplo, Afonso Costa, que também andou nos jesuítas, de repente passou a ateu e republicano, e com tal animosidade contra a Igreja Católica que como chefe de governo chegou a acabar com o feriado de Natal, que passou a ser o Dia da Família. James Joyce abandonou a fé católica, era um livre-pensador, mas os seus estudiosos dizem que frequentava a igreja, como para se tentar reconciliar, e os seus livros, com muita influência de S. Tomás de Aquino, são de um escritor católico. A sua saúde era precária, sofria do estômago, tinha graves problemas de visão e seria um tanto esquizofrénico: Foi isso que Carl Jung disse à sua filha, Lúcia, quando ele a foi tratar à Suíça. Enfim, era uma pessoa não totalmente reconciliada consigo mesma. O seu estado de saúde piorou. Com uma úlcera perfurada, e pela segunda vez. tenta ser tratado em Zurique, mas o caso complicou-se, faleceu a 13 de janeiro de 1941, tinha 48 anos.


A OBRA

A obra de James Joyce não sendo muito vasta teve uma enorme influência na literatura do século XX. Sobretudo os seus romances, que são de uma construção complexa e inovadora. Ao estruturar o processo narrativo da “Corrente de Consciência”, ele facultou instrumentos para que muitos outros autores viessem a repudiar o realismo, o dadaísmo e o surrealismo, criando novas correntes de escrita. Para além da sua obra póstuma, constituída sobretudo por cartas e escritos diversos, James Joyce deixou-nos:

- Música de Câmara (poemas (1907);

- Dubliners, Gente de Dublin (coleção de contos, 1914);

- Retrato do Artista Quando Jovem (romance, 1916)

- Exilados (Peça de teatro, 1918);

- Ulysses (romance, 1922);

- Pomas, um tostão cada (poemas, 1927);

- Collected Poems (poemas de 1936, que inclui toda a sua poesia publicada);

- Finnegans Wake (romance, 1939).




O LIVRO Ulisses

            Trata-se de um romance épico irlandês, de estrutura complexa, misturando o classicismo como o romantismo, utilizando diversas formas de narrativa e inúmeras varáveis, como a seguir verá. Foi composto durante o seu êxodo, entre Trieste, Zurique e Paris, entre 1914 e 1921.

 a) PRINCIPAIS PERSONAGENS

 – Leopold Bloom: filho de um judeu húngaro e de uma irlandesa católica, é um homem compassivo e curioso, que gosta de música. Tem 38 anos. Trabalha como corretor de publicidade, passa muito tempo fora de casa, e o mesmo faz a sua mulher, que é cantora. É um Ulisses dos tempos modernos. Na sexualidade é propenso ao voyeurismo e a certo fetichismo. É sensível, inteligente e caridoso, amigo dos animais. Não se sente totalmente realizado com a sua vida. Teve uma infância infeliz e sente-se cosmicamente um solitário. Tolera a infidelidade da mulher, a quem quer ver feliz. Sai cedo de casa e demora a chegar para não dar com ela na cama com Boylan, o seu último amante. Muitos põem em causa a sua virilidade.  

Marion Bloom (Molly): a esposa de Bloom. Corpulenta, morena de ascendência espanhola, talvez com raízes judaicas, de 34 anos. Não é muito inteligente, mas é opinativa e mulher de sangue quente. Foi criada em Gibraltar pelo seu pai, major Brian Tweedy, é órfã de mãe e cantora profissional. Possui boa aparência, de que se serve para aumentar a sua autoestima. Gosta de seduzir e ser admirada. Recusa-se a ter sexo com o marido desde que perdeu o filho, Rudy, e mantém relações acesas com os seus amantes, o último é o seu empresário, Blazes Boylan, e sem olhar a quaisquer moralismos. 

Hugh Blazes Boylan: É um gerente de espetáculos, muito conhecido na cidade, com fama de mulherengo, que tenciona organizar a próxima atuação de Molly em Belfast. Ele vai-se encontrar com ela naquela tarde, porventura para irem para a cama, mais do que para falarem do próximo espetáculo. Durante o livro o seu nome é várias vezes evocado, ele pesa muito na cabeça de Bloom.

Stephen Dedalus: jovem de vinte e poucos anos, inteligente e instruído, que gosta de música e poesia. Parece tirado de James Joyce, onde é personagem de Retrato de um Artista Quando Jovem. Foi criado sob um ambiente muito religioso, mas está numa crise de fé depois da morte da mãe. O pai está vivo, mas foge à sua autoridade.

Malachi Mulligan (Buck): amigo de Stephen, estudante de medicina. É gordo, irónico e mordaz, ridicularizando tudo e todos, o que não agrada a Bloom.

  Haines: estudante de folclore da universidade de Oxford. Vive com Buck e Mulligan na torre Martello.

Millicent Bloom (Milly): filha distante de Leopold Bloom, só sendo referida no livro. Tem quinze anos, está a interessar-se por rapazes.

Simon Dedalus: pai de Stephen. Nasceu em Cork e mudou-se para Dublin. A sua vida desmoronou-se depois da morte da mulher. É bastante sociável e crítico em relação ao filho.

Georg Russel: famoso poeta do renascimento literário irlandês.

Richard Best: bibliotecário da Biblioteca Nacional que gosta de conversar sobre Hamlet.

Marta Clifford: Uma mulher com quem Bloom se corresponde. Dá muitos erros. Ela é apenas ousada sexualmente nas cartas.

 O Cidadão: Nacionalista irlandês. Antes praticou desporto. Não se sabe a posição que ocupa no sistema. É agressivo, extremista, antissemita e xenófobo.

Martin Cunningham: acha extravagante o comportamento de Bloom. É muito parecido com Shakespeare.

Garreth Deasy: diretor da escola de meninos onde Stephen ensina. É um protestante do Norte, aliado ao governo inglês.

Lenehan: editor de corridas num jornal. Perde dinheiro numa corrida. Olha Bloom com algum desdém.

Lynch: estudante de medicina, velho amigo de Stephen, cujas teorias tem paciência para ouvir. É personagem de o Retrato do Artista Quando Jovem.

Patrick Dignam: Conhecido de Bloom, a cujo enterro vai. O homem morreu por excesso de bebida, deixa viúva e vários filhos na miséria.

Nanneti: editor de Dublin.

Jack Power: amigo de Simon Dedalus, não muito do agrado de Bloom.

Benn Dollard: Canto conhecido por toda a cidade de Dublin, que se entrega à bebida.

Bella Cohen: mulher de café, corpulenta, pouco incomodada com o que pensam dela. Tem um filho a estudar na universidade, pago por um dos seus amantes.

 

 

b) GRÁFICO COM UM MECANISMO PARA FACILITAR A LEITURA DO LIVRO

    


            NOTA: As varáveis estruturais não conseguem estar aqui claramente visíveis, porque o livro é complexo e o nosso grafismo, rudimentar, mas o leitor pode completar as ideias, lendo o resumo dos episódios. Todavia, dá para perceber a sua engrenagem. Começa em Telémaco, pelas 8 horas, ainda se consegue perceber no gráfico e termina 19 horas depois, com o início do 18 episódio, durando a narrativa não mais do que um dia. Atenda-se que no episódio 4, Calipso, se volta outra vez às 8 horas. As personagens, carregadas de socialização vão desenvolver a sua ação conforme ali é destacado. Este gráfico é muito baseado nos importantes estudos de Stuart Gilbert e nas notas de João da Palma-Ferreira, que seguimos e livremente, tentando-as completar.

 

 

c) BREVE RESUMO DO LIVRO

 I PARTE

Episódio 1: (Na Odisseia reporta-se a Telémaco, filho de Ulisses e Penélope, que, assediada por inúmeros pretendentes, manda o filho à procura do pai; a cena passa-se na torre; o órgão será o corpo humano; a arte a teologia; a cor o branco e o ouro; a simbologia o herdeiro; a técnica a narrativa jovem). São 8 horas. Os temas dominantes são a Irlanda e o catolicismo. Começa com um diálogo entre Buck Mulligan, um estudante de medicina, e Stephen Dedalus, um jovem escritor, personagem retirada de Um Retrato do Artista Quando Jovem. Vivem na Torre Martello, o primeiro está a barbear-se. Têm uma conversa sobre a morte, sobre um afogamento. Stephen não está satisfeito por Mulligan ter trazido para ali o estudante, Haines. Tomam um café os três e vão até à praia onde assistem ao salvamento de um afogado. Mulligan e Stephen combinam um encontro no pub Ship ao meio dia e meia hora. Este último resolve não regressar à torre, aborrecido – acha que Mulligan se assenhorou dela, é um usurpador.

Episódio 2: (Na Odisseia tem a ver com Nestor, rei de Pilos, que, procurado por Telémaco diz que o pai talvez esteja em Esparta; o órgão será o sangue; a arte a História; a cor o castanho; a simbologia o cavalo; a técnica a do catecismo pessoal). São 9 horas. Os temas dominantes são a mulher e o antissemitismo. Stephen aparece a dar uma aula de História sobre a vitória de Pirro. Fala com o mal encarado Sargent e imagina o amor que a mãe dele terá por ele. Vai ao gabinete do diretor Sr. Deasy, de quem recebe um anúncio para publicar no jornal. Para a ele a Inglaterra está nas mãos dos judeus. A Irlanda é o único país que nunca perseguiu os judeus porque nunca os deixou entrar. Fala de Helena de Troia, que deu origem a uma guerra, para ele as mulheres trouxeram o pecado ao mundo.

            Episódio 3: (Na Odisseia é o episódio equivalente a Proteus, deidade que diz que Ulisses está prisioneiro na ilha de Calipso; a cena é na praia; o órgão será os olhos; a arte a Fisiologia; a cor o verde, a simbologia a maré). São 10 horas. Os temas dominantes são a Inglaterra e o Ulster. Stephen passa pela vivenda de um seu primo. Tem uma conversa com ele enquanto a mulher dá banho ao filho. Vai a seguir até às rochas de Sandymount passear pelas areias. Anda perturbado, ainda com a morte da mãe no pensamento, com quem se recusou a rezar em vida. Urina atrás de uma pedra e deambula por ali à volta meditando sobre o sentido disto tudo, deixando no ar enigmáticas mensagens, algumas em língua estrangeira. Pratica aqui mais intensivamente a técnica do fluxo de consciência.

Museu James Joyce em Dublin na Torre Martello


Parte II

Episódio 4: (da Odisseia extrai o título: Calipso, uma ninfa que se apaixonou por Ulisses e o reteve na sua ilha; a cena é passada numa casa; o órgão é o rim; a arte a Economia, a cor a laranja; a simbologia a ninfa; a técnica a da narrativa madura). São de novo 8 horas. Os temas dominantes são a mitologia, o exilio, e Israel. Leopold Bloom está a comer vísceras de mamíferos e aves. Uma gata roça à volta da mesa. De repente a ação transporta-se para a cidade. Pensa em metempsicose e reencarnação. Dá com duas cartas, uma é para a mulher, cantora, Molly. Ele suspeita que o empresário de espetáculos, Blazes Boylan, vá ter com ela à cama nesse dia, e esse pensamento atormenta-o. A outra carta é da filha, Milly. Foi defecar e limpou – ao que se presume o ânus –, com uma história premiada. O enterro de Patrick Dignam preocupa-o.  

Episódio 5. (Ulisses desembarca na ilha dos lotófagos, que se alimentar da flor de lótus, uma droga; a cena é no banho; o órgão os genitais; a arte é a botânica, a cor será o amarelo; a simbologia a eucaristia, a técnica o narcisismo). São dez horas. Os temas dominantes são a mulher e a religião. Bloom vai aos correi receber uma carta de Martha Clifford, que a recebe como Henry Flower, seu pseudónimo. Repara nas pernas de uma mulher, lê a carta e rasga-a. Vê um padre a recolher a sagrada hóstia. Medita sobre Teologia. Compra um sabonete para si e encomenda uma loção para a mulher, que estaria já na cama com o seu amante. Pelos vistos sente-se muito grato a ela, a ponto de lhe comprar uma prenda para que esteja asseada. Depara-se com um desconhecido numa corrida de cavalos a quem dá palpites. Acaba a entrar num balneário e gozar de um bom banho todo nu.  

Episódio 6: (Na Odisseia, o título é Hades, o deus dos mortos; a cena é no cemitério; o órgão é o coração; a arte a religião, a cor o preto e branco; a simbologia o governo; a técnica o incubismo). São 11 horas. Os temas dominantes são a mulher, a religião e a saúde. Estão presentes além de Leopold Bloom, Martin Cunningham, Power e Simon Dedalus, pai de Stephen. Atravessam a cidade de Dublin acompanhando os restos mortais de Dignam. Pelo caminho passam por uma mulher de luto. Mais à frente Bloom cruza-se com Boylan, o mais recente amante da sua mulher. Evita-o. O seu pensamento foge-lhe para a morte do seu filho, Rudy e do seu próprio pai. Tudo na cidade lhes parece sinistro. Por fim o padre faz o responso. Continuam a conversa, ainda se entusiasmam com uma mulher que veem sedutora. O mundo fantasmagórico ainda os atrai, mas têm de se voltar para a vida.  

Episódio 7: (Da Odisseia, o título é Éolo, o deus dos ventos, das novidades; a cena é no jornal; o órgão é os pulmões; a arte é a retórica, a cor o vermelho, o símbolo o editor; a técnica a do Zentimemática, dos “subentendidos”). São 12 horas. Os temas dominantes serão a fama e a imprensa. O episódio começa por falar da coluna de Nelson, símbolo do domínio britânico. Leva a ação para o Freeman’s Journal and Nation Press. Leopold Bloom vai tratar de um anúncio da casa Alexander Chaves, especializado em chás. Este jornal foi fechado. Na rua encontra Stephen que vai levar uma carta de Deasy ao diretor do colégio em que trabalha, contendo notícias sobre a febre aftosa. Este episódio está cheio de figuras de retórica a dar ao texto mais do que um sentido. Está dividido em pequenos subtítulos, como os jornais. A seguir Bloom reúne-se com Stephen e outros num pub. As conversas ali são no calão mais grosseiro.

Episódio 8: (Odisseia, o título é do Lestrigões, dos antropófagos; a cena passa-se durante um almoço; o órgão é o estômago, a arte a Arquitetura; a cor é o vermelho e branco; o símbolo é a polícia; a técnica é a dos movimentos peristálticos). Já passa do meio dia. Os temas dominantes serão os sacrifícios humanos e a religião. Ele começa por falar de gelado de ananás, desviando a conversa a seguir para um restaurador da igreja de Sião. A irlanda vem sempre à baila. Encontra uma antiga namorada, ouve falar em trabalho de parto e deteve-se. Recorda a sua estadia no hospital a tratar de uma picadela de abelha que bem lhe custou. Entra num pub e vê homens a comer como animais, o que o enoja. Segue dali para o pub de Davy Byrne. Recorda Molly e a vida das estátuas dos deuses e deusas do Museu Nacional, surreal. Resolve passar pelo museu onde se depara com Boylan, o amante da mulher, que vai encontrar-se com elas às 4 horas da tarde. Procura que ele não o veja.

Episódio 9: (Na Odisseia corresponde a Cila e Caríbdis, monstros marinhos que Ulisses enfrentou, o cenário é a biblioteca, o órgão é o cérebro, a arte é a Literatura, o símbolo é Stratford, a técnica a da Dialética). São duas da tarde. Os temas dominantes são a paternidade e a Trindade. Stephen fala sobretudo de Hamlet e de teoria literária. Põe-se a firmar que a obra de Shakespeare se baseia sobretudo no adultério, e que para isso ele se inspirara na sua mulher. É uma galhofa, em que falam do judeu errante e dos sacerdotes druidas. Curiosa aquela crítica a Shakespeare. Também Joyce baseia o livro na contante fuga de Leopold Bloom pela cidade de Dublin, sempre com a ideia perversa na cabeça de Blazes Boylan, o amante da mulher, ir para a cama com ela naquela tarde. E ele, como perfeito cuckold, não o enfrenta – deixa que ele vá lá para não ferir os sentimentos da mulher. 

Episódio 10: (Na Odisseia corresponde ao canto X, às pedras rolantes, de quando os antropófagos lançaram pedregulhos pela montanha abaixo para afundar as naus de Ulisses; a cena é nas ruas; o órgão o sangue, a arte a mecânica, a cor é o vermelho; o símbolo os cidadãos, a técnica a do labirinto). São 3 horas da tarde. O tema será a alucinação em si. Dá a palavra ao padre Conmee, que lê o seu breviário. James Joyce faz a seguir intervir diversas personagens das mais importantes às menos importantes. Dão quase uma volta à cidade comentando os mais diversos assuntos. Leopold Bloom compra livros para oferecer à esposa (amor platónico), enquanto Blazes Boylan compra vinho e frutos para quando se encontrar com ela a consolar fisicamente (amor erótico). O vice-rei da Irlanda é visto seguir a cavalo com o seu séquito inaugurar uma quermesse. Duas mulheres sujas com um guarda-chuva e um saco no qual rolam onze conchas, detiveram-se a ver o arraial.

Episódio 11: (Na Odisseia reporta-se ao canto das sereias, a Cila e Caríbdis, a quem os homens tinha dificuldade de resistir aos seus encantos; a cena é na sala de concertos; o órgão o ouvido, a arte a música, a cor será a do bronze e ouro; a simbologia a das garçonetes; a técnica a da fuga, da paciência). São 16 horas. O tema é obscuro. O texto com fragmentos desconexos, era de tal modo incompreensível que os editores ingleses que os receberam em Londres até pensavam tratar-se de mensagens em código, e tiveram inicialmente medo de as imprimir, pois estava-se na Primeira Guerra Mundial. James Joyce usa aqui algumas vezes o calão. Leopold Bloom encontra-se com o pai de Stephen num hotel, quando Blazes Boylan, o amante da mulher entra ali e logo se afasta para ir ao encontro dela. Antes ainda fala com Lenehan sobre um tema em que mete cornos. Entretanto, na maior das calmas, Bloom houve uma execução musical do pai de Stephen e diverte-se com as garçonetes ali presentes. De seguida vai escrever a Martha, uma sua amante. 

Episódio 12: (Título da Odisseia reporta-se às Ciclopes, gigantes imortais; a cena é na taberna; o órgão o sistema muscular; arte, a arte a Política; cor, talvez a púrpura; o símbolo, feniano “separatista irlandês do Reino Unido”; a técnica o gigantismo). São 17 horas. O tema é o da tolerância e do antissemitismo. O episódio decorre no bar de Barney Kiernan. Bloom quer tratar do seguro da viúva de Patrick Dignam, mas é mal recebido por um cidadão feniano extremista e antissemita, xenófobo. Bloom é a favor da paz e contra a xenofobia, lembra-lhe que o próprio Salvador era judeu. Prossegue-se ali com grandes discussões. São apresentados como exemplos extensos roles de clérigos, sábios e heróis. Discute-se sobre a Irlanda e a velha Albion, sobre a Bíblia, entre outros temas escaldantes. Antes de sair da taberna, enraivecido, o cidadão atira uma lata de biscoitos à cabeça de Bloom, que só por sorte não lhe acerta. Cunningham veio buscá-lo de carruagem.  

Episódio 13: (O título da Odisseia é Nausíaca “Nausícaa”, a filha do rei Alcínoo, que recolhe Ulisses numa praia depois de um naufrágio “canto VI”; a cena é a das pedras; o órgão é o olho e o nariz; a arte a pintura; a cor a cinza e o azul; o símbolo a virgem, a técnica a da tumescência e detumescência). São 8 horas da noite. O tema dominante é o da maternidade. Na costa de Satandymount vagueia Bloom displicentemente, e aparece por lá MacDowell, uma virgem solitária. O idílio entre os dois é inspirado por Maria, estrela do mar, em analogia com a deusa grega Atena. No meio de fogos de artifício e sonho ocorre uma masturbação. É uma fantasia sexual ousada. Leopold Bloom ainda passa no hospital ver Mina Purefoy. Talvez a mulher dele esteja com o amante, é preciso esperar que ele saia. Isto mexe consigo. O episódio acaba com ele a cantar Cucu, Cucu, Cucu, e por três vezes –, subentenda-se o sentido que terá.  

Episódio 14: (O título é o do Gado ao Sol, na Odisseia corresponde ao canto XI, em que Tirésias profetisa que Ulisses terá longa vida, mas que não moleste os bois de Hélio “Titã do Sol”, porque algo de funesto lhe acontecerá; a cena é no hospital; o órgão é o útero, a arte é a Medicina; a cor o branco; o símbolo a maternidade; a técnica a da gestação). São dez horas da noite. O tema dominante é o da história da língua inglesa. Leopold Bloom visita a maternidade onde Mina Putrefoy está a dar à luz. De repente encontra-se com Stephen, Mulligan e outros estudantes de medicina e vai beber para um bar comentando o alcance da maternidade. No fecho do bar segue com Stephen para um bordel, para depois de algumas incursões desconexas dissertar sobre as fases históricas da língua inglesa, desde o anglo-saxão antigo a Dickens e Carlyle. E terminarem num calão quase intraduzível 

Episódio 15 (Tem o título Circe da Odisseia, a feiticeira que tinha o seu palácio defendido por feras a partir de homens que tinha transformado em animais, e que fez o mesmo aos 23 enviados de Ulisses,  metamorfoseando-os em porcos; a cena num bordel; o órgão é o aparelho locomotor; a arte é a magia; a cor é a multicor; o símbolo é a prostituição, a técnica a da alucinação). É meia-noite. O tema é o da degradação humana. Trata-se, de facto, de uma representação teatral num mundo de magia e alucinação passado num bordel de Bella Cohen de Dublin, em que Bloom e Stephen são as figuras principais. Ali revivem o seu passado, as suas fantasias e fetiches sexuais. Stephen tem uma alucinação, quando julga ver e ouvir o cadáver da sua mãe, transtornado, parte um lustre e desmaia. Ainda é Bloom que vai ter de pagar o prejuízo. Porém, ao sair é atormentado pela recordação da morte do seu filho Rudy. Entretanto, Stephen recupera a consciência.


James Joyce e Nora, sua esposa

 

Parte III

 Episódio 16: (O título da Odisseia é Eumeu. Tem a ver com o fiel feitor do gado de Ulisses, a cuja cabana vai pedir ajuda, Canto XIV; a cena é no albergue, o órgão é o sistema nervoso; a arte a navegação; a cor será o branco e o preto; o símbolo a navegação, a técnica a da narrativa velha). É uma hora da madrugada. O tema é a história de viagens marítimas. Pouco depois daqueles momentos passados no pub, Stephen é abandonado pelos amigos e é o senhor Bloom, sempre prestável, a pô-lo em modo de sair, sacudindo-lhe a roupa da sujeira que tinha. O albergue simboliza o curral de Eumeu. Andaram por ali, até que Stephen constatou a necessidade de irem dormir a qualquer sítio. Aparece, entretanto, mais uma personagem a confundir o enredo, é Murphy. Fala-se de viagens marítimas, da guerra dos Boers, em que a Inglaterra estava a ter dificuldades, do nacionalismo irlandês, de religião, e Bloom acaba a fantasiar sobre a hipotética carreira musical de Stephen.  

Episódio 17: (O título da Odisseia é Ítaca, a ilha natal de Ulisses, pequena, mas para ele importante, à qual quer regressar. A cena é na casa; o órgão é o esqueleto; a arte é a Ciência; a cor será a da multicor; o símbolo são os cometas; a técnica é a do catecismo impessoal). São duas horas da manhã. Os temas aqui são genéricos. Há uma longa caminhada pela cidade, em que Bloom e Stephen se questionam um ao outro, misturando os temas mais absurdos como a Astronomia e a micção. E faz uma série de inventários sobre a cidade. É composto apenas de perguntas, e isto como que é mais uma forma de se escrever um livro, tipo catecismo, com perguntas e respostas. Algumas são de ordem científica. São curiosos os inventários sobre bens de heranças, o conteúdo das gavetas, que dão para perceber como era a vida então na cidade. Esta será uma nova forma de relatar as coisas. Leopold Bloom chega finalmente a casa e depara com vestígios de Blazes Boylan, o amante da mulher, lá ter estado, mas isso não o deprime, talvez até excite, faz algumas reflexões e vão-se deitar. Ele dorme com cabeça do lado dos pés dela.  

Episódio 18 (O título da Odisseia é Penélope, a mulher de Ulisses, destacado para a Guerra de Troia, que tinha à sua volta inúmeros pretendentes a quererem desfrutar dela e dos seus bens, e que ele ia matar um a um; a cena é passada na cama, o órgão são os genitais; a arte será a da sedução; a cor a da noite; o símbolo é o da Terra Mãe; a técnica é a do monólogo feminino, escorreito e malicioso. Sempre a corrente de consciência a funcionar). Passa-se durante a madrugada até às 8 horas. O tema é uma evocação o passado de infidelidades da mulher. O episódio não leva pontuação, e não prima pela clareza, é essa a sua intenção, mas está cheio de nostalgia. Molly, a esposa infiel a contento do marido, fica surpreendida com o pedido dele lhe servir o pequeno almoço na cama: mais um ritual de humilhação que ele cultiva. Está excitada, pensa na tarde de sexo que teve com Boylan, e começa a recordar o seu passado de cantora, cheia de admiradores, desde a infância, em Gibraltar, com o pai ali destacado como militar na defesa do morro, à espartana como Penélope. Veja-se a analogia com Ulisses embarcado para a Guerra de Troia. O livro termina com a recordação do pedido de casamento que Bloom lhe fez, e da sua aceitação feita em tom não só romântico como erótico: «Sim, eu aceito. Eu aceito, sim!»   


d) UMA APRECIAÇÃO GERAL

                 O romance Ulisses representa um dos expoentes mais elevados de estruturação, é segundo alguns críticos um livro monstro. Cruza tantas histórias, introduz-lhe tantos elementos interpretativos, faz entrar nele tantas variáveis, serve-se de mais do que uma língua e usa diversas linguagens, às vezes nebulosas, favoráveis à criação de subentendidos, que se torna difícil de compreender numa primeira leitura, mesmo tendo o leitor bases para o ler. Esta edição tem no início de cada capítulo uma pequena introdução de João da Palma-Ferreira, que ele fez socorrendo-se ele próprio de vários estudos que o precederam, para que nos possamos orientar e compreender o livro. É quase como se o romance precisasse de um manual de instruções. James Joyce apostou na originalidade formal, que privilegiou em relação à clareza dos assuntos. Usou e abusou de imagens, associações e entinemas. Apesar do livro ser de difícil compreensão era inovador, atrevia-se a falar de temas que muitos recusavam e teve rápida difusão. 

             O autor explora o «fluxo de consciência» como forma de expressão literária, permitindo que as personagens deixem fluir livremente o seu pensamento sobre os assuntos que estão a vivenciar, produzindo uma narrativa nem sempre coerente, mas inspiradora de sentidos ocultos, ou iluminadora de ideias adjacentes, enriquecedores do conjunto. Vai além do monólogo interior, ao introduzir-lhe associações inesperadas. A realidade torna-se mais extensa, distorcida, interferindo na sua coerência, a linguagem chega a perder aparentemente o nexo. Esta obra, sendo um monumento de cultura literária, que complexifica, perde muito para o leitor que não tenha um mínimo de conhecimentos sobre mitologia greco-romana, para quem não tenha lido a Odisseia de Homero, para quem não possua uma boa bagagem de História da Inglaterra e da Irlanda, bem como algumas noções sobre religião e cultura literária.

            James Joyce não apreciava os livros vulgares, de leitura fácil, menosprezava mesmo os prémios literários, talvez por eles serem muitas vezes livros corriqueiros, ao sabor da moda: por, ou o júri não ter capacidade para apreciar devidamente as obras a concurso, ou por não se atrever a premiar as verdadeiramente originais, capazes de subverter o sistema, limitando-se a distinguir as que cumpram melhor os requisitos do concurso. E já não se fala daqueles que dizem que alguns livros vêm predestinados. Era contra o imbecilismo da literatura instalada. Imagina-se que deve haver aqui algum ressentimento por não ser um autor premiado. No fim do episódio 4 ele escreve: Rasgou metade da história premiada e limpou-se com ela. Depois puxou as calças para cima, pôs os suspensórios a abotoou-se. Fechou a desengonçada e perra porta da retrete e saiu da sombra para o ar livre. Esta forma como se limpou na retrete à história premiada tem um sentido pejorativo que ele quis deixar aqui bem evidente.

            Um dos aspetos mais caraterístico do livro, e que nem sempre é devidamente comentado, é a relação entre Bloom e Molly. Lembremo-nos que na Odisseia Ulisses regressou a casa a pedido da esposa, Penélope, que se sentia assediada pelos seus pretendentes, mandando o seu filho, Telémaco, chamar o pai. Aqui em Ulisses com James Joyce, os amantes foram sempre andando à volta de Molly, e ele não os vai matar ou sequer obstar, antes, lhes facilita a vida. Neste dia 26 de junho de 1904, ele vagueia por toda a cidade de Dublin, não vem logo para casa para dar oportunidade à esposa desta passar uma tarde bem passada com o seu amante, Blazes Boylan. Naturalmente na cama. Ele parece até ter orgulho em ter uma mulher fogosa, e tudo faz para que ela seja feliz. Depois de muitas referências à infidelidade, no episódio 9 põe-se a falar do «ser ou não ser», acusando Shakespeare de basear as suas obras no adultério da mulher. E mais à frente, no episódio 13, no meio de fogos de artifício e indícios de masturbação, ele grita, e por três vezes: Cucu, Cucu, Cucu, porventura a festejar o encontro da esposa com o amante. Mais para o final, no episódio 15, Davy Stephens vangloria-se à frente de Bloom de que O Mensageiro do Sagrado Coração e o Evening Telegraph vão trazer um suplemento no dia de São Patrício com o novo endereço de todos os cornudos de Dublin. Enfim, James Joyce parece aqui tentar dar dignidade ao fetiche cuckold. O episódio final, o monólogo de Marion Tweedy revela um extenso rol de infidelidades que ele não ousa perturbar, e parece até se comprazer.

            O discurso de Ulisses está cheio de imagens, ele recorre à metáfora, à metonímia, à anáfora, à onomatopeia, à síncope, à apócope, à apóstrofe, vai à descoberta de novas palavras, procurando efeitos novos e surpreendente, difíceis de traduzir, uma metalinguagem. Neste aspeto só superado pelo seu Finnegans Wake, em que se serve de uma linguagem experimental, de tal modo complicada que se torna praticamente impossível de traduzir. Tivemos de comprar a sua versão em inglês. Ele recorre também frequentemente ao calão, naquele tempo capaz de chocar mais do que hoje e dar fama ao livro. A sua linguagem é frequentemente obscena. Para muitos leitores pode parecer simples calão popular, mas para outros é indecente, perversa; outros achá-la-ão imoral, abjeta; e para uns tantos será depravada, repugnante, devassa. Tendo lido alguns dos seus poemas, onde vai mais longe neste aspeto, achamos que neste tipo de linguagem ele só foi ultrapassado pelo Marquês de Sade, que às vezes é tão repugnante que nos faz rir. Todavia, em James Joyce, honra lhe seja feita, ele limita-se a traduzir por palavras, as mais grosseiras, a nossa animalidade mais crua e nua.

            Como é sabido, este livro aparece hoje muito valorizado nos areópagos da cultura ocidental, alguns, dirão, sobrevalorizado. A sua escrita não tem o refinamento literário de Shakespeare, não possui a abrangência e profundidade psicológica das obras de Dostoievski, a emoção imaginativa de Jane Austen, a grandeza e monumentalidade histórica de Tolstoi, a ironia de um Eça de Queiroz, a estranheza desafiante de Kafka. O que tem ele, então, que o torna digno de figurar entre os maiores romances? James Joyce consegue fundir num livro, ainda bastante extenso, passado num dia, vários estilos, inúmeras linguagens, ligando a literatura clássica à moderna, cheio de enigmas, de entinemas, deixando matéria para entreter os críticos durante décadas. E na verdade, acertou. Contudo, o seu virtuosismo não convenceu toda a gente, de tão excessivo torna-se artificial, Virgínia Woolf foi uma das que não apreciou as suas acrobacias literárias, e a própria mulher, Nora, desaprovou a sua linguagem licenciosa, que o manteve impublicável nalguns país por algum tempo. Muitos leitores não chegam ao fim do romance por o acharem demasiado complexo, pesado, embora afirmem normalmente, para não passarem por parvos, que o leram de ponta a ponta, que se trata de um livro fabuloso. E assim ele é, nalgumas das suas caraterísticas. Agora até se comemora por aí o Bloomsday!


Martz Inura

30/06/2020