terça-feira, 7 de maio de 2024

isabel allende

 




ISABEL ALLENDE
A Casa dos Espíritos
Tradução de Carlos Martins Pereira
Biblioteca Sábado (2007)
O livro é dedicado à mãe, Francisca Llona Barros e à avó, Isabel Barros (portuguesa)

 

BIOGRAFIA

           Isabel Angélica Allende Llona nasceu em 2 de agosto de 1942, em Lima no Peru. Allende nasceu em Lima, Peru, filha de Francisca Llona Barros chamada "Doña Panchita" (filha de Agustín Llona Cuevas e Isabel Barros Moreira, de ascendência portuguesa), e de Tomás Allende, ali funcionário da embaixada do seu país, mantendo por conseguinte a nacionalidade chilena. O pai, primo-irmão do malogrado ex-Presidente do Chile, Salvador Allende, era homossexual, e com o escândalo abandonou a família. A mãe voltou a casar com outro diplomata, e acabou por ir viver para La Paz, na Bolívia. Andou com a família e ainda esteve em Beirute. Regressada ao Chile, conclui os estudos secundários e casa com o estudante de engenharia, Miguel Frias, de quem teve dois filhos e uma filha. Começou a escrever em revistas e a fazer peças de teatro. Era moderadamente conhecida na televisão. Por um curto período foi tradutora, mas despediram-na, por nas traduções fazer as heroínas mais inteligentes do realmente eram. Em 1973 dá-se o golpe militar no Chile, que impõe Augusto Pinochet. Ela está na lista das pessoas procuradas pelo regime e foge para a Venezuela, onde vive treze anos. Passou uns tempos na Espanha. Em 1982 recebe um telefonema do Chile a dizer que o seu avô estava a morrer, ele escreve-lhe uma carta imensa, para ele continuar em si vivo, de que resulta o romance A Casa dos Espíritos, e mudou tudo na sua vida. Registe-se que este romance foi rejeitado por várias editoras sul-americanas. Em 1987 divorciou-se do primeiro marido, e casou com William Gordon. Obteve a nacionalidade estadunidense em 1993. Mais tarde divorciou-se deste, casando-se em 2019 com John Cukras. Vive atualmente na Califórnia.

Recebeu diversas honrarias. Em 2004 foi admitida na Academia Americana de Artes e Letras, em 2010 recebeu o Prémio Nacional de Literatura e em 2010 foi-lhe atribuída a Medalha Presidencial da Liberdade. Recebeu honoris causa na San Francisco State University e na Havard University. Foi ainda agraciada com o Prémio Gabriela Mistral. Recebeu dezenas de outras distinções, de instituição que se quiseram cobrir com o seu prestígio e a sua fama.

Criou a Fundação Isabel Allende em 1996, dedicada a apoiar programas que promovam e preservem os direitos fundamentais de mulheres e crianças em homenagem à sua filha, Paula Frías Allende, que morreu de uma doença rara em 1992, e a inspirou a escrever o romance Paula. A Casa dos Espíritos foi passada a filme, sendo parte das cenas filmadas na Herdade do Cercal, Alentejo, Portugal. Ver foto em baixo. 

 

OBRA

            A obra de Isabel Allende é vasta e variada. Há, porém, quem a considere uma escritora anémica, diga que não é pelo número de venda de livros que o valor de um escritor pode ser avaliado. Nem todos terão a excelência do que é aqui analisado. Já sabemos que se ela não fosse sobrinha de Salvador Allende e obtivesse a naturalidade americana nunca seria tão reconhecida, mas isto não serve para lhe retirar o seu mérito de escritora, que é extraordinário. A sua obra inclui, para além do trabalho na imprensa, contos, livros infantis, peças de teatro e romances, destacando-se os seguintes:

A Casa dos Espíritos (1982)
De Amor e Sombra (1984)
Eva Luna (1987)
O Plano Infinito (1991)
Paula (1995)
Retrato de Sépia (2000)
Cidade dos Deuses Selvagens (2002)
Longa Pétala de Mar (2019)
Mulheres de Minha Alma (2020)
A Ilha Sob o Mar (2009)
O Caderno de Maia (2011)
Violeta (2021)
O Vento Sabe Meu Nome (2023)


O ROMANCE A Casa dos Espíritos




a.      PERSONAGENS PRINCIPAIS

Clara del Valle, a primeira geração de mulheres fortes que vão dar vida ao romance. Aos dez anos ficou quase muda e teve de ser tratada ao seu mutismo. Desde cedo se revela como portadora de qualidades paranormais: move os objetos com o olhar, fala com os espíritos, tem premonições. Mesmo assim é atraente e Esteban Truela desde o primeiro momento que viu nela algo de extraordinário, e faz udo para casar como ela. É a matriarca da família, mesmo tendo uma marido violento e despótico, ela consegue dominar os aspetos cruciais daquela família. Possui um diário que vai servir de base à narrativa.

Esteban Trueba, um homem corajoso e ambicioso, que não aceita ser pobre. Consegue finalmente impor-se socialmente. É obcecado pelo poder e riqueza, e torna-se violento, autoritário, por vezes cruel. É implacável para que se lhe opõe. É o patriarca da família, muito conservador, quer nos costumes quer na política, por vezes impulsivo e autoritário. Depois de enriquecer, graças à sua capacidade de trabalho e iniciativa, com os anos torna-se senador. É um homem da Direita, não suporta comunistas. Apesar da sua dureza tem um lado sensível, a sua vida vai-lhe revelar muitas surpresas.

Branca Trueba nascera já envolta em muito amor. Mais tarde foi levada para a fazenda Las Três Marias que o seu pai recuperara da ruína em que estava. Era uma mulher mais segura de si, determinada e apaixonada. Apaixonou-se por Pedro Terceiro García, filho de um inimigo do pai, de classe inferior. Engravida dele e Trueba leva-a para a cidade e casa-a à pressa com um conde francês, Jean Santigny, que por aí vagueia, depois de o subornar com muito dinheiro. A filha está confusa, e depois de a tentarem convencer que o seu apaixonado tinha morrido, aceita a situação para se tornar mais independente. Não dormia sequer com o conde, é o símbolo da resistência à opressão.

Pedro Terceiro García é um jovem revolucionário, sedutor, que gosta de cantar e tocar flauta andina. Desde jovem que convive com Branca, por quem acaba de se apaixonar. O namoro é tido às escondidas, porque o pai de Branca não tolera aquele relacionamento por ele ser filho de Pedro Segundo García, de quem é imigo, e para mais comunista, exercendo uma profissão tão pouco digna de cantor. Vê que lhe retiram a sua amada, mas não perde a esperança de a encontrar. Obtém alguma notoriedade social como músico de cariz revolucionário. Representa a luta contra a injustiça e a perseverança do amor.

Alba Trueba, a terceira mulher desta geração de matriarcas, será um pouco autobiográfica. Herda da sua avó a sua generosidade e espiritualidade, e do avô o seu temperamento forte e determinado. É filha de Branca e de Pedro Terceiro García. Corajosa e idealista, envolve-se com um jovem revolucionário, Miguel, tendo por isso de enfrentar várias dificuldades. O seu avô não aprova tal namoro, pois como sabemos não suportava comunistas, que vê em todo o lado. É perseguida e presa, sofrendo sevícias às mãos da polícia política. Representa a luta contra a opressão. É a narradora e põe em relevo alguns aspetos da Ditadura Militar, que não respeita nem a Esquerda nem mesmo alguma Direita.

Férula, irmã de Trueba, uma mulher dedicada à família, primeiro à mãe, e depois à cunhada, Clara, de quem se torna possessiva lá em casa a tratar dos filhos dela. É muito religiosa e moralista, rígida nas suas crenças. Faz uma vida solitária e sacrificial. Não casou e atribui muita da sua infelicidade ao irmão, que acaba por a expulsar de casa para não infernizar a vida de Clara, a quem tenta dominar com o seu exagerado desvelo. É uma personagem um tanto ambígua, representa a frustração, o ressentimento, a infelicidade.

 

b.      SINOPSE DO LIVRO (encurtada, para não se perder o prazer de ler o livro)

 I – Rosa, a Bela: Casa dos Del Valle. A filha Rosa, noiva de Esteban Trueba, morre envenenado por veneno talvez destinado ao pai e a irmã Clara, que tinhaprecisto uma morte, com remorsos fica muda durante anos.

          II – Las Três Marias: Devastado com esta morte, Trueba sai das minas onde trabalha, e volta para a terra, tentando recuperar a fazenda Las Tres Marias,  pertencente à família

            III – Clara, a Clarividente: Trueba as tarde procura noiva, e vai a casa dos Del Valle. Clara já tinha começado a falar, dizendo-se que se ia casar. Os dois casam e têm Blanca, Jaime e Nicolau.

            IV – O Tempo dos Espíritos: Esteban Trueba constrói uma grande casa. Vem para ali morar a sua irmã, Férula, muito afeiçoada à mulher. Clara cria ali um ambiente isotérico, em que entram em comunicação com os espíritos.

            V – Os Amantes: Blanca apaixona-se Pedro Terceiro Garcia, filhos de trabalhadores de Las Três Marías de uma classe social inferior e com ideias libertárias, que o pai desaprova.

            VI – A Vingança: Trueba descobre que Pedro Terceiro Garcia engravidou a ssua filha Blanca, esmurra esta e persegue aquele, a quem, depois de uma luta corta três dedos, mas poupa a vida.

            VII – Os Irmãos: Para fugir à vergonha, Clara e Blanca voltam para a cidade. Onde Jaime é médico e Nicolau espiritualista. Trueba casa filha co o Conde de Satigngy, que a troco de dinheiro aceita casar co ela grávida.

             VIII – O Conde: Blanca é convencida que Pedro Terceiro está morto, aceita casar com o conde e vão viver para longe num palácio. Descobre que o seu marido é um homem perverso e no último mês de gravidez foge para casa dos pais. 

          IX – A Menina Alba: Blanca acaba por dar à luz uma filha, Alba, que rapidamente se vai integrando na família, granjeando a simpatia de todos. Com o tempo o próprio avô, homem violento, acaba por se afeiçoar a ela.

             X – Período da Decadência: Dá-se a morte Clara, e com ela desaparece a alma daquela casa. Esteban Trueba, está cada vez mais rico e dedica-se à política.

            XI – O Despertar: Alba é alegria daquela casa. É rebelde. Aos dezoito anos apaixona-se por Miguel, um jovem ligado ao movimento estudantil, um tanto esquerdista, contrário às ideias do avô.

             XII – A Conspiração: No país a situação política complica-se, a esquerda ganha as eleições e é boicotada pela direita. Há tomada de fazendas, greves, falta de alimentos, é o caos.

         XIII – O Terror: O presidente é deposto, Jaime é morto. Nicolau exila-se. Blanca e Pedro Terceira conseguem um salvo-conduto para o Canadá. Alba é presa. 

             XIV – A Hora da Verdade: Alba tem uma relação com Miguel, revolucionário procurado pelos golpistas. É torturada e violada na prisão, e ainda vai ser o seu avô, que através de uma velha amizade vai mover influências para a mesma ser libertada. 

            Epílogo: Alba, que antes de ser liberta esteve num campo de prisioneiras políticas e sofreu na pele a dor da opressão, uma vez solta recebeu uma carta do avô a pedir-lhe para escrever a história da sua família para que ela não se perdesse.

 

Do filme a Casa dos Espíritos (1993) de Bille August, com Jeremy. Irons: como Trueba. Meryl Steep: Clara. Glenn Close: Férula. Winona Ryder: Blanca. António Banderas: Pedro Terceiro 


c.       CONSIDERAÇÕES FINAIS

   A Casa dos Espíritos de Isabel Allende é uma saga familiar que abrange quatro gerações da família Trueba, traçando suas vidas através de um período tumultuado da história chilena. Ao longo do romance, os membros da família Trueba enfrentam amores proibidos, conflitos de classe, violência e perdas, enquanto o país mergulha em crises políticas e sociais. A história entrelaça o real e o mágico, o passado e o presente, à medida que a matriarca Clara, sua filha Blanca, e sua neta Alba tentam encontrar seus caminhos num mundo patriarcal, marcado por opressões e injustiças. O livro é um retrato épico do amor, poder, e resistência, narrado com uma rica mistura de realismo mágico e análise social, capturando a essência de uma era e o espírito inquebrável de uma família.

        O romance integra-se na corrente do realismo mágico, tem inegáveis influências de Gabriel García Márquez, embora isto não lhe retire valor, pois a autora seguiu a corrente latino-americana da época, a quem deu um cariz pessoal e uma subtil perspetiva feminina. Ela soube lidar com a modernidade e a tradição, o poder e a oposição, o real e o imaginário. Ao patriarquismo autoritário, ela impôs personagens femininas fortes, que por artes mágicas vão resistindo a essa opressão, constituindo um veículo de transformação social. O real e o imaginário, o misticismo, estão bem evidentes no romance, sobretudo em Clara, a clarividente. As casas carregam todo o peso do passado das personagens, são um reservatório de memórias mobilizadoras, fortalecendo de esperança os presentes.

            É um prazer ler este livro, a sua escrita é extraordinariamente fluída, rica em detalhes e cheia de lirismo, como alguém disse, íntima e épica. A autora faz um retrato histórico-social bastante realista da sua época, abordando temas como o conflito de gerações, em que a mulher desempenha um papel subalterno, mas que pela sua centralidade familiar acabam por ter um papel determinante. Na política, em que destaca as desigualdades sociais e a luta de classes, a opressão e a rebelião; o conservadorismo e o progressismo. Ali se revela um facto que esbate a diferença entre esquerda e direita. É Esteban Trueba, um inveterado político de direita, que nos fins da vida vai tentar salvar a neta, Alba, nas mãos dos golpistas, que não respeitam nem a esquerda nem a direita menos radical. Também não ignora a parte romântica, descrevendo com detaçlhe os amores dramáticos que foram acontecendo.

            A Casa dos Espíritos de Isabel Allende não teve inicialmente grande aceitação. Foi enviada para publicar a inúmeras editoras sul-americanas, que a rejeitaram. Mas uma vez lançada no mercado livreiro, o seu êxito foi imediato. Digamos que merecidamente, pois estamos na presença de um grande romance, que aborda a sociedade no seu todo, com personagens fortes e uma linguagem rica. Todavia, temos de reconhecer que se não fosse ela ser sobrinha do malogrado Salvador Allende, morto em1973, durante o ataque ao Palácio Presidencial de Santiago do Chile, que tanto brado deu no mundo, e ainda por ter adquirido a naturalidade estadunidense em 1993, o seu êxito nunca seria tão retumbante. O romance acabou por ser adaptado ao cinema, ao teatro e à ópera, o que demonstra o interesse que despertou. Integra-se num contexto histórico dramático e como nos dá uma cosmovisão da América Latina daquele tempo.

 Martz Inura, 25/09/2024