domingo, 4 de fevereiro de 2024

GRACILIANO RAMOS

  


GRACILIANO RAMOS
Vidas Secas
Posfácio de Álvaro Lins
Editora Record
62ª Edição, S. Paulo, 1992


       O HOMEM

Graciliano Ramos de Oliveira foi um escritor brasileiro, nascido em Quebrangulo, município do Estado de Alagoas, em 27 de outubro de 1892, que se celebrou como romancista, contista e memorialista. Exerceu, entre outras atividades, a de jornalista e político, como perfeito (presidente da câmara municipal) de Palmeira dos Índios, e mais tarde a de inspetor do ensino no Rio de Janeiro. Era proveniente de uma família numerosa da classe média: o mais velho de quinze irmãos. Viveu os primeiros anos da sua vida no Nordeste Brasileiro, na cidade de Buíque, do Estado de Pernambuco, e depois em Viçosa, no de Alagoas. Em 1910 estava em Palmeira dos Índios, onde o seu pai montou um comércio. Um incidente o marcou sobremaneira: em 1915, perdeu três irmãos e um sobrinho, vítimas da peste bubónica. Estava no Rio de Janeiro, para onde tinha ido depois de concluir o segundo grau de ensino, e regressou a Palmeira dos Índios, onde casou, e chegou a ser perfeito em 1927, a que renunciou dois anos depois. Na década de 1930 viveu em Maceió, capital do Estado de Alagoas, e voltou a trabalhar na imprensa. Era um homem de convicções, voltado para os desfavorecidos. Com o autogolpe de Estado de Getúlio Vargas, em 1936, foi preso e acusado de apoiar a Intentona Comunista. Esta paragem na prisão inspirou-o a escrever algumas das suas mais importantes obras, como Vidas Secas. Foi libertado onze meses depois sem culpa formada e voltou à sua vida ativa. Continuou a escrever. Em 1938 era inspetor do ensino no Rio de Janeiro. Em 1940 ingressou no Partido Comunista Brasileiro a convite do seu então secretário-geral, Luís Carlos Prestes. Fez então viagens pela Europa, visitando vários países, incluindo a então União Soviética. Casou duas vezes e teve oito filhos. Em 20 de março de 1953, padecendo há algum tempo de um tumor pulmonar, morria no Rio de Janeiro, aos 60 anos.  


A OBRA

A obra de Graciliano Ramos inclui romances, contos, memórias, crónicas, correspondência epistolar, traduções e até trabalhos de crítica literária. Alguns dos seus livros são mundialmente conhecidos, sendo-lhe atribuídos vários prémios. Não nos vamos alongar aqui muito na análise de Vidas Secas, ao gosto dos brasileiros, que o tem estudado muito justamente sob os mais variados aspetos. Há por aí uma extensa bibliografia desses estudos, a que os interessados poderão recorrer. Aqui, usando o formato reduzido destes estudos, iremos simplificar as coisas. O objetivo destas modestas páginas é salientar a importância do autor e promover a sua leitura. Assim, destacaremos apenas as seguintes obras:


   – Caetés - romance (1933) (Prêmio Brasil de Literatura)
   – São Bernardo - romance (1934
   – Angústia – romance (1936)
   – Vidas Secas – romance (1938) (Prémio Fundação William Faulkner – EUA)
   – A Terra dos Meninos Pelados - contos infanto-juvenis (1939)
   – Infância - memórias (1945)
   – Insônia - contos (1947)
   – Memórias do Cárcere - memórias (1953) (obra póstuma)
   – Linhas Tortas - crônicas (1962) (obra póstuma)
   – Viventes das Alagoas - crônicas (1962) (obra póstuma)
   – Cartas - correspondência (1980) (obra póstuma)
   – Cangaços (livro) - crítica literária (2014) (obra póstuma)
   – O Anti modernista: Graciliano Ramos e 1922 (2022); (obra póstuma)

  


O ROMANCE Vidas Secas

 

a.       Principais Personagens: 

 

 Fabiano: a personagem principal do romance, proveniente de uma família que comporta a mulher, dois filhos, uma papagaio e uma cachorra, (em Portugal usa-se mais o termo cadela). Trata-se de um homem rude mas determinado, lutando contra as adversidades do meio miserável, afetado por uma seca milenária, e contra a própria sociedade, feita à sua imagem.

 Sinhá Vitória: a mulher de Fabiano. Senhora forte e fria, de cor morena, que encara a vida com generosidade e resignação. Apesar de analfabeta sabe fazer contas, e dá muita alma àquela família. O seu maior sonho é ter uma cama de verdade como o patrão.

 O Menino Mais Velho: já espigadote e um tanto independente, começa a despertar para a vida e faz as perguntas inconvenientes aos pais. É muito curioso e quer descobrir o significado de algumas palavras, a que os adultos nem sempre têm resposta pronta. 

 O Menino Mais Novo: talvez com não mais de cinco anos, débil para poder acompanhar os pais no seu percurso, que a mãe ainda tem de pegar ao colo de vez em quando. Sonha a tornar-se um grande vaqueiro. Tal como o anterior, não lhe é dado nome, é apenas mais um.

Baleia: é a cadela da família, sem raça, que, no meio de personagens descaraterizadas sofre o processo inverso, o de humanização, adquirindo um nome. Apesar da sua fidelidade à família, sofre com os seus fracassos, e acaba por ter um trágico fim.

 O Soldado Amarelo: no livro é antagonista de Fabiano, representando, assim como o fiscal da prefeitura e o dono da fazenda, a opressão do poder institucional. Chegou a sovar Fabiano e a metê-lo na cadeia. Ele não tem nome, a sua farda personifica a repressão policial. 

Tomás da Bolandeira: o modelo de erudição e de conhecimento para as demais personagens. Sabia ler e escrever e podia votar. Era dono da fazenda onde Fabiano se alojou e olhado com respeito. Contudo, não tinha respostas para tudo.


Do filme Vidas Secas dirigido por Nelson Pereira Dos Santos, com Átila Iório e Maria Ribeiro
A foto retrata bem a aridez da paisagem, dá-nos a noção do espanto, da angústia vivida pelo casal perante tanta depravação

b.      Resumo:

 Capítulo 1, Mudança: Na planície avermelhada de juazeiros, Fabiano, de espingarda ao ombro segue ao seu destino, levando a esposa, sinhá Vitória, os dois filhos, a cadela e o papagaio. Tinha sido um dia inteiro a caminhar. A mulher leva o filho mais novo ao colo, e ele, vendo o filho mais velho a desfalecer, teve que o carregar aos ombros a certa altura. Iam cansados e cheios de fome e não havia quase nada para comer. Sinhá Vitória, num repente resolveu apanhar o papagaio e cozinhá-lo. O mesmo destino iria ter um preá que a cadela, Baleia, apanhou. Param numa fazenda abandonada. Fabiano foi à procura de água, que trouxe para dessedentar a família. Chegou a noite, e à volta da fogueira eram uma família feliz, quanto se pode ser.

 Capítulo 2, Fabiano: Apossado da quinta abandonada, Fabiano sente-se tomado pela dureza do meio. Era um homem rude, no dizer dele, um bicho, e disto até tinha muito orgulho, pois significava que estava à altura daquele mundo adverso. Encontrou a quinta ao abandono, mas ao vir chuva o dono veio ali reclamar a sua posse. Fabiano ficou a tomar dela como capataz, mas sob condições humilhantes. Recebeu para tal um cavalo e outros apetrechos, mas tinha de os devolver quando fosse embora. Troca com a mulher impressões sobre o dono da quinta, seu Tomás da bolandeira, um homem que lia muito e falava muito bem, mas que não tinha soluções para aquela seca. Sinhá Vitória sonhava em possuir uma cama como a do patrão, o que, segundo ele era doidice. Andava preocupado com a pouca comida que tinham, e a educação a dar aos meninos.

 Capítulo 3, Cadeia: Um tempo depois. Fabiano já tem dinheiro e vai à feira comprar farinha, feijão, sal e um corte de chita vermelha para a mulher. Foi à bodega de seu Inácio beber uma pinga de querosene e dá-se conta que ela tinha sido batizada e manifesta-lhe a sua indignação. Ele nem lhe respondeu. Para passar o tempo resolve ir jogar o 31 com o sodado amarelo e acaba perdendo dinheiro. Sai dali aborrecido e nem de despede bem dele, acabando por seu preso. Na cadeia pôde meditar na situação lastimável em que ficara. Apeteceu-lhe dar cabo da vida do carcereiro, mas depois pensou na mulher, nos filhos e na cachorrinha e aceitou a situação. Na fazenda viviam desgraçadamente. A mulher dormia numa cama de varas, e os filhos andavam por lá, eram uns brutos, e quando crescessem iam ter uma vida miserável como a dele. Sentiu-se esmagado perante tal destino adverso.

 Capítulo 4, Sinhá Vitória: Acocorada junto das pedras que fazia de trempe, sinhá Vitória soprava ao lume. Era uma mulher amarga, sobre a qual pesavam muitas responsabilidades, vivendo com dois filhos cercada de miséria. A cadela fez-lhe um gesto de satisfação e ela deu-lhe um pontapé, não estava para festas. Acordara de mau humor, ainda a lamentar-se não ter dormido numa cama decente, e ter de se sujeitar a um leito de varas. Um bafo quente (mormaço) levantou-se do chão e ela temeu o pior e pôs-se a rezar. Aliás, para qualquer dificuldade, não tendo outros meios para lhe acudir, ela recorria à reza. Bebeu um pouco de água e foi levantar o testo à panela. Provou a sopa. Estava feita e acrescentou-lhe água. Veio-lhe à lembrança o papagaio que tivera de matar para alimentar a família e mortificou-se a pensar no destino do pobre animal. E ela continuava a dormir numa cama de varas, não de  couro e sicupira como a do seu Tomás da bolandeira. Bem, talvez se vendesse as galinhas…

Capítulo 5, O Menino Mais Novo: Fabiano, devidamente equipado de vaqueiro, metido nos couros, de pederneiras, gibão e guarda-peito, montando o seu cavalo sentia-se ali o homem mais importante do mundo. O Menino mais novo, que estava a um canto a brincar, ao ver cair o pai da cavalgadura deu um grito. Vai aconchegar-se à mãe, que catava lêndeas ao filho mais velho e não ligou a todo aquele espalhafato do marido, dando-lhe um “afasta-te para lá”. Ele foi deitar-se numa esteira, adormeceu e sonhou. Acordou e foi brincar ali à volta. A mãe à hora do almoço repreendeu-o por ser tão irrequieto. À tarde ele voltou a pensar fazer das suas, ainda se lembrou de pedir ajuda ao irmão mais velho, mas desistiu da ideia, antes que ele se risse na sua cara. Andou a brincar com as cabras e o bode. Viu o irmão com a cachorra e quase sentiu raiva deles, por lhe serem tão indiferentes. Meteu-se com o bode e caiu na água. Viu o tropel da cabras perder-se na ladeira e periquitos a voar. Depois receou que o pai e a mãe talvez o viessem a castigar por causa do seu acidente. Sonhou em crescer, dormir numa cama de varas, fumar cigarros de palha, calçar sapatos de couro cru e chegar a casa vestido de vaqueiro, para admiração da mãe e do irmão. Mas isso ainda estaria longe, ele o irmão eram meninos sem nome.

Capítulo 6, O Menino Mais velho: o filho mais velho do casal, a que os pais e o próprio autor se escusava de nomear, por fazer parte da paisagem incaracterística. Estavam a crescer e manifestou as suas dúvidas à mãe sobre o que seria o inferno, a que ela não deu resposta, indo de seguida perguntar ao pai, que depois lhe tirar as medidas ao pé para umas alpergatas lhe deu um tabefe para se afastar, não estava para responder a doidices. O menino foi para um canto contar a sua história para as paredes – o seu vocabulário seria tão pobre como o papagaio que comeram. Ele soube por uma vizinha, através de uma reza que fizeram, que era um lugar mau e ficou admirado – ele só conhecia lugares bons, mesmo o chiqueiro que havia junto dos currais do gado. Insistiu em perguntar aos pais e eles lá lhe foram dizendo que nem sempre as relações entre as criaturas foram amáveis e fora criado um lugar ruim, com espetos e fogueiras. Ele ficou desiludido por um nome tão bonito como inferno servir para designar uma coisa má. Andava espantado por haver estrelas na terra, não falou do céu, talvez não lhe soubesse o nome. Abraçou-se a seguir à cachorra, Baleia, ali ainda encontrava algum carinho e compreensão. 

– Capítulo 7: Inverno: Veio a estação das chuvas, que não seria muito demorada, e choveu torrencialmente. À volta de uma fogueira, sinhá Vitória, Fabiano, os meninos e a cadela, Baleia, aqueciam-se. Lá fora estava um frio medonho, ouviam-se as goteiras a pingar no chão. Fabiano esfregava as mãos de contente, aquela chuva era esperança para uma boa criação. O menino mais velho foi buscar uma braçada de lenha a um canto da cozinha, a mãe concordou, mas o pai desconcordou, dizendo que aquilo era uma falta de respeito, e tentou mesmo dar-lhe uma sapatada, o que a mãe evitou, condenando a braveza do marido. A chuva caíra de chofre, levando terra, pedras e árvores à sua frente. Sinhá Vitória receou que tal enxurrada arrastasse a casa, embora ela estivesse bem amarrada. Se a água a invadisse tinham de subir para um morro. O rio subira a ladeira e as vacas encostaram-se à casa. A mãe abanava a fogueira, que estava a murchar, e o pai comprazia-se com aquela chuva. Os meninos, indiferentes a esta ameaça, entretinham-se a brincar na cozinha. Chegou a noite e tiveram de se acomodar. Sinhá Vitória teria de apagar a lareira, tirar os carvões e a cinza, e só depois se iam deitar, o casal na cama de varas e os meninos numa esteira debaixo do caritó (nicho ou vão de parede). 

Capítulo 8, Festa: havia festa de Natal na cidade, e a família foi toda. Fabiano veste uma roupa de brim branco, e sinhá Vitória um vestido de ramagens vermelhas e sapatos de salto alto. Mas chegam ao rio seco e depressa se descalçam para melhor poderem chegar à cidade. A cachorra Baleia seguiu com eles. Chegaram e entraram na igreja, os meninos ficam admirados com os santinhos dos altares. Fabiano não gostou de se ver apertado no meio de tanta gente, que olhava como sua inimiga. Não ousou fazer nada, lembrou-se da surra que levara na noite passada na cadeia. Não ia assistir à novena porque a camisa deixava ver os pelos do peito e era um desrespeito. Ao comparar-se às pessoas da cidade, Fabiano considerava-se inferior. Convidou a mulher e os filhos para os cavalinhos e bebeu uma cachaça. A partir dali sentiu-se mais animado. Como se julgasse injuriado pelo povo desafiou alguém a dizer que ele era feio. Sinhá Vitória teve uma necessidade fisiológica e não encontrou melhor sítio que as traseiras das barracas. Perderam a cachorra Baleia, que depois os localizou. Os meninos estavam maravilhados por verem à sua volta tantas coisas bonitas, que nem sabiam os nomes. Como podiam as pessoas arranjar nomes para tantas coisas! Livres dos nomes as coisas ficavam distantes e misteriosas. Começaram a falar mais baixo para não desencadear forças adversas. Pararam num sítio, sinhá Vitória ficou a olhar a casa de seu Tomás da bolandeira com uma cama de verdade, enquanto o marido dormia de barriga para o ar.  

Capítulo 9, Baleia: A cachorra dava um pouco de alegria àquela casa. Mas estava a morrer, muito magra, com várias doenças – era uma dor de alma vê-la. Fabiano pensou que ela estivesse com hidrofobia e amarrou-lhe um rosário de sabugos de milho ao pescoço. Mas ela estava cada vez pior, coçava-se nas estacas, babava-se, era pasto das moscas. Então ele resolveu matá-la. Foi buscar a espingarda de pederneira. Procurou uma posição em que lhe pudesse acertar, mas fê-lo com tanto azar que só lhe acertou nos quartos traseiros. Ela ficou a mancar e fugiu dali a ladrar desesperadamente. Sinhá Vitória procurou esconder isto dos filhos, mas respeitava a decisão do marido. A cachorra ainda tentou correr para debaixo de uma juazeiros, arrastando-se apenas com as pernas da frente, onde havia terra e se costumava esponjar. Parou finalmente exausta antes do destino. Não compreendia aquela atitude do dono. O que lhe estaria acontecendo? Notou a presença de animais à sua volta. Uma angústia a despertou, ela precisava de vigiar as cabras, e estava ali sem se poder mexer. Sentia-se cada vez mais fraca, respirava com dificuldade. Queria dormir e acordar feliz a lamber as mãos ao dono, Fabiano, a afagar sinhá Vitória e a brincar com os meninos. E lá se finou. Ela pensava e sentia como as demais criaturas de Deus.

Capítulo10, Contas: Fabiano recebia uma quarta parte da receita dos bezerros e uma terça das cabras. Depois de fazer as contas com sinhá Vitória foi à cidade receber o que lhe era devido, pois não vivia do ar, precisava de dinheiro. Porém, o patrão, que o sabia analfabeto, prejudicou-o nos cálculos, dando-lhe menos do que ele esperava. Queixou-se de um modo bruto daquela diferença, e ele atribuiu-a aos juros. Desgostoso com aquele protesto veemente, achou que Fabiano devia procurar serviço noutra fazenda. Fabiano estava numa situação de inferioridade, e acabou por lhe pedir desculpa  ele ainda sabia guardar respeito aos homens, aquele seu resmungo devia-se provavelmente à ignorância da mulher. Parou mais à frente a contar o dinheiro e achou que tinha sido roubado, a mulher era esperta, não se tinha enganado. Tomava conta do gado quase de graça e ainda lhe vinha com os juros. Ladroeira! Recordara-se como já tinha sido roubado pelo operador da prefeitura quando fora vender carne de porco à cidade. A pagar aqueles impostos não compensava criar porcos para venda. Estava a ter dificuldade em aceitar aquela triste sina de os pobres trabalharem para os ricos, como o fizeram o seu pai e o seu avô. A sua vida não tinha futuro – a matar-se de trabalho e morar numa casa alheia enquanto o deixassem. Acendeu um cigarro, não se recordava de factos agradáveis na sua vida. Levantou a cabeça e viu as estrelas lá em cima. Depois pensou na mulher, nos filhos e na cachorra morta. Pobre Baleia. Era como se tivesse matado uma pessoa da família.

Capítulo 11, Soldado Amarelo: Fabiano sai da fazenda para ver onde andaria o gado, seguiu a direção que a égua tinha tomado. Mas havia por ali muita vegetação já grossa, e para conseguir andar mais depressa teve de cortar as quipás e as palmeiras que se punham à frente. Teve a noção que fizera ali alguns estragos, algo lhe pesava na consciência, quando lhe aparece o soldado amarelo. Os dois confrontaram-se com o olhar. Fabiano lembrou-se do que passara com ele na cidade, da surra que levara na cadeira, pensou mesmo em atacá-lo se ele o viesse prender. Mas ponderou, e achou que não estava nele matar um cristão. Meteu o facão na bainha, mas ainda não sabia como iria reagir se o viesse embaraçar. Ele pertencia à cambada dos safados, era um homem que ganhava dinheiro a maltratar as criaturas indefesas. Foram momentos de muita tensão, aqueles que os dois enfrentaram, um à frente do outro. Fabiano imaginou-o morto, a arrastá-lo para dentro da catinga para ser devorado pelos urubus. Achou melhor afastar-se do sítio, e o soldado vendo-o acanhado, ganhou coragem e avançou para ele a perguntar-lhe o caminho. Governo era governo. Fabiano tirou o chapéu de couro, curvou-se e indicou o caminho ao soldado amarelo.  

Capítulo 12, O Mundo Coberto de Penas: O bebedouro da fazenda cobria-se de arribações. A chuva que caíra no inverno não fora suficiente. As aves vinham aos bandos. Era mau sinal, provavelmente o sertão ia pegar fogo. O casal antevia grandes desgraças, o sol chupava os poços, aquelas aves levavam os restos da água que o gado carecia para beber, e começou a morrer de sede. As aves cobriam de penas o mulungu, arbustos a que devoraram as folhas e as flores. Fabiano veio à fazenda buscar a espingarda e foi lá tentar afastá-las. Fez uns disparos, matou umas seis, mas depressa os arbustos se cobriram de mais penas. Fez um novo tiro, nova queda de aves, tinha ali muito que comer, mas elas voltavam a cobrir os arbustos, era inútil este processo para as afastar dali. Ficou desanimado. Lembrou-se do patrão que o roubava, do soldado amarelo que o oprimia, e agora vinha mais aquela infelicidade da seca. Continuou a atirar às aves, iam ser salgadas. Tentou animar-se, talvez a seca não viesse. Pegou na caça e desceu a ribanceira, se a Baleia estivesse viva ia regalar-se. Matara-a forçado por causa da moléstia, a cólera podia pegar-se aos meninos. Chegou a casa já a escurecer, a pensar na maldição do lugar, por onde a alma da Baleia andaria. Mas esmorecera, era desgraça sobre desgraça, teria de abandonar o local. Ia consultar sinhá Vitória e pensar na viagem, ela pensaria como ele. 

Capítulo 13, A Fuga: A vida na fazendo tornou-se cada vez mais difícil. O Sol esturricava o chão, os ventos trituravam as folhas secas da vegetação, que estiolava de secura. Deixaram de aparecer arribações no céu azul. Pouco a pouco os bichos da fazenda foram morrendo, devorados pelo carrapato. Sinhá Vitória fartava-se de rezar, mas as coisas não melhoravam. Fabiano ainda esperava um milagre, que não aconteceu. Não tiveram remédio senão partir. Matou um bezerro de que aproveitou as carnes para salgar e levar na viagem. Saíram de madrugada, deixando as coisas ao abandono. Sinhá Vitória levava à cabeça um baú de folha pintado, e os dois meninos pequenas trouxas de roupa. Fabiano com o aió a tiracolo, levava a espingarda e o facão. Seguiram ainda a ruminar no que deixaram para trás, mas estavam mais velhos, iam cansados. Todavia, ainda havia neles uma réstia de esperança. Veio-lhes a fome e foram sentar-se sob uns garranchos de uma quixabeira. Comeram o que havia: punhados de farinha e pedaços de carne. Beberam uns goles de água. Fabiano tentou deslumbrar por ali perto um bebedouro, sinhá Vitória deu-lhe ânimo para o encontrar, mas ele não via aonde. Os meninos adormeceram. Viram então ao longe os urubus à volta de um cavalo agonizante. E aconteceu o impensável, os urubus a seguir começaram a volteá-los de cada vez mais perto. Sinhá Vitória teve de pôr um chapéu na cabeça dos meninos e sair dali. Caminharam na esperança de encontrar um bebedouro, imaginando um destino melhor para a família. Cultivariam um pedaço de terra e depois mudar-se-iam para a cidade. Seguiram naquela toada, alimentados por sonhos. O sertão se esvaziaria, ficaria deserto, repelindo para a cidade homens fortes e brutos como eles.  



Paisagem caraterística do Nordeste Brasileiro mais agreste (por deferência do Google)

c.       Comentário Geral:

O romance Vidas Secas, não sendo muito volumoso, deixou uma marca indelével na Literatura Brasileira. A sua importância reside em ser uma das fontes do movimento modernista brasileiro, do realismo social e do regionalismo, em que os escritores brasileiros começaram a libertar-se da influência estrangeira. Aqui, Graciliano Ramos volta-se para a cultura do Nordeste, retratando sem floreios desnecessários a vida, os costumes e a linguagem simples do seu povo. Está mais preocupado em nos reproduzir a sua história, mostrando-noso drama de um povo pobre e inculto, acossado pela seca e pela exploração, que em se esmerar na riqueza literária. Usa palavras do Português antigo, e as próprias da região, ricas de significado. Citamos aqui algumas para facilitar a leitura do livro: aió é bolsa de caça; alpercata é sapatilha; bambo, lasso; brabo, bravo; brim, tecido tipo sarja; caritó, nicho da casa; catinga, o bioma, o tipo de vegetação do Nordeste; cocorote era o mesmo que cascudo, tabefe; jatobá e juazeiro, árvores ou arbustos da região; mormaço, tempo quente; mofino, triste, desagradável; preás, tipo de roedores; pirralho, criança, pequenote; querosene, uma cachaça vendida no Nordeste.

O livro deu origem a um filme com o mesmo nome, dirigido por Nelson Pereira dos Santos. A dureza do clima do Nordeste, quente e seco, traz à paisagem uma aridez própria das fraldas dos desertos, tornando nalguns locais a vida das pessoas muito difícil, quase impossível. Graciliano Ramos conhecia bem esta região, pois nasceu e viveu ali muito tempo. Narra a vida de uma família pobre, que, face às secas endémicas na região é obrigada a deambular de fazenda em fazenda à procura de trabalho. Se o meio ambiente é hostil, as pessoas que o habitam tendem a encoiraçar-se psiquicamente, voltando-se mais para si, são menos sensíveis à desgraça alheia, e por vezes cruéis. O autor, que sentiu bem na pele o desamparo daquele povo, denuncia no livro o estilo opressivo das autoridades locais face aos desfavorecidos, e a voracidade exploratória dos fazendeiros, que se aproveitavam da sua situação de miséria. Um tal sistema era propício a fomentar vagas de retirantes em direção às cidades. Eles viviam desintegrados do meio social, eram passivos, sem consciência de classe.

A linguagem desta obra é simples e austera, como o eram a paisagem e os seus habitantes. O autor, talvez por as (os) personagens serem analfabetas e rudes, não terem traquejo para se expressar adequadamente e descrever as suas emoções, recorre a uma narrativa preferencialmente na terceira pessoa. É curioso que durante todo o livro, as personagens raramente se atrevem a fazer um diálogo, limitando-se a pequenas interjeições para manifestar a sua revolta contra a adversidade. A aspereza da paisagem, abrasadora e estéril, que o autor tenta reproduzir, como que expressa a frieza e severidade das pessoas. O mesmo se poderá dizer quanto ao seu inverso. Ele economiza nos adjetivos e nas palavras eruditas. Estávamos em 1938, o tempo ali é inclemente, e como persegue as pessoas, é mais psicológico que cronológico, e nem sempre linear. O espaço, embora não bem localizado, é caraterístico do Nordeste do Brasil.   

Vidas Secas é um romance original, não só quanto ao modo como o autor analisa o tema, retratando de forma universal a luta do ser humano pela sobrevivência, como também pela linguagem que utiliza, concisa e vernácula, evitando como se disse os diálogos, como forma de tornear o vocabulário reduzido das pessoas mais humildes. Ele descreve com objetividade a subjetividade das personagens, que estende aos animais domésticos, ali providos de alma. Põe em destaque a pobreza, a ignorância, a fome e a exploração económica. No livro torna-se evidente como a opressão e a angústia podem isolar as pessoas, petrificando-lhes a sensibilidade, minguando-lhes a identidade. Há aqui e ali uma crítica velada aos políticos. Põe a nu o modo de produção antigo, desigualitário e injusto, ainda de matriz colonial. Por tudo isto o livro de Graciliano Ramos é considerado uma obra-prima com um lugar proeminente na literatura brasileira e reconhecimento mundial.


        Martz Inura
        04/02/2024