terça-feira, 13 de junho de 2023

ANTON TCHÉKHOV

 



ANTON TCHÉKHOV
A Senhora do Cãozinho
Tradução de Nina Guerra e Filipe Guerra
Relógio D´Água Editores



O HOMEM

Anton Pávlovitch Tchékhov foi um consagrado escritor russo, percursor do conto moderno. O pai era um pequeno comerciante, cristão ortodoxo, muito devoto, mas demasiado austero, talvez tirano, e a mãe muito carinhosa e ótima contadora de histórias. Tchekhov tinha mais cinco irmãos e chegou a participar no coro da sua paróquia. Foi neste ambiente que formou a sua personalidade. Nasceu em 29 de janeiro de 1860, em Taganrog, um porto marítimo no Mar de Azov.

O pai foi à falência, tinha ele dezasseis anos, a família foi para Moscovo à procura de novas oportunidades, vivendo com grandes dificuldades, e ele continuou em Taganrog para concluir dos seus estudos secundários, que teve de pagar através dos mais diversos trabalhos. A sua paixão era Medicina, e foi então para Moscovo, onde se matriculou na faculdade e se juntou à família. Mas mesmo aqui teve de recorrer ao seu génio na escrita para sobreviver economicamente.

Ele ansiava por ser um médico reputado, um investigador científico, mas aos vinte anos já era um escritor famoso, os seus contos eram avidamente lidos. O leitor moderno deve ter em conta que naquele período, em que não havia rádio, televisão ou cinema, a literatura, cuja publicação muitas vezes se iniciava nos jornais em fascículos, tinha muito público. Em 1884, forma-se em Medicina, mas continua a escrever, e em 1886 ganha o prémio literário Pushkin. Infelizmente já evidenciava sintomas da tuberculose, que o levariam à morte.

Em 1890 faz uma viagem de comboio e navio ao Extremo Oriente, à Ilha Sacalina, no Mar do Japão, onde convive com as condições de vida difíceis e desumanas que as pessoas ali suportam, que o marcaram bastante. Em 1886 compra uma casa a cinco quilómetros de Moscovo, em Melinovo, hoje museu, para onde leva a família e exerce medicina, muitas vezes gratuita, aos camponeses pobres em redor. Dedicava-se também à agricultura e jardinagem. E continuava a escrever, isso era obrigatório, incluindo agora peças de teatro, que tiveram maior ou menor êxito.  

                Durante uma visita a Moscovo, em 1897, sofre uma forte hemorragia nos pulmões. Ele não queria reconhecer a sua doença, foi com dificuldade que o convenceram a ser observado. Foi-lhe diagnosticada uma tuberculose e recomendado um novo estilo de vida. Com a morte do pai em 1898, ele compra uma casa em Ialta, onde pensa ter melhores condições para se curar, levando para lá a mãe e uma irmã. Ali continua a escrever várias obras, em que se inclui duas peças para o Teatro de Arte em Moscovo. Reincide na plantação de árvores e jardinagem. Foi visitado por Liev Tolstói e Máximo Gorki, nomes sonantes da literatura russa, que o admiravam e já se tinham apercebido da sua grave doença.

            Ele era um solteirão muito cobiçado na Rússia, e em maio de 1901 casa-se com Olga Knippe, uma atriz. Dado a doença dele e a profissão dela, ele passa a maior parte do tempo em Ialta e ela em Moscovo. Um tempo depois ela tem um aborto espontâneo, o que é motivo de muita controvérsia. A verdade é que ele, apesar do seu otimismo continua a piorar. Em 1904 a doença está no seu estádio terminal, embora ele não o reconheça. Os seus amigos recomendam-lhe a ir fazer uma cura à Alemanha – era dar-lhe mais uma réstia de esperança para a sua vida, que se estava a encurtar. Em 3 de junho, ele partiu com Olga para a cidade alemã de Badenweiler, na Floresta Negra, para ali ser tratado, mas já era tarde. Em 15 de julho de 1904 ele morria naquela cidade.

 

    Um dos volumes publicados pela Relógio D'Água Editores

 A OBRA

            A obra de Anton Tchékhov é vasta, e estendem-se ao conto, ao ensaio, às novelas, às peças de teatro e às cartas. Não se vão referir aqui todas, que facilmente poderão ser recolhidas nas suas imensas biografias. Citamos as mais importantes para que os leitores as comecem a ler:


No teatro, umas catorze peças, as seguintes:
– Ivanov (1887)
– A Gaivota (1896)
– As Três Irmãs (1900)
– O Jardim das Cerejas (1904)

Nos ensaios (dois):
– Caderno de Notas

Nas novelas (cinco):
– A Estepe (1888)
– O Duelo (1891)

             Nos contos, eles são mais de quinhentos, teremos de nos confiar ao bom gosto dos editores que normalmente editam uns tantos em vários volumes, não nos dando outra escolha, contudo, salientam-se alguns:


– O Camaleão (1884)
– Vanka (1886)
– Kachtanka (1887)
– O Estudante (1894)
– A Casa de Mezanino (1896)
– Ionitch (1898)
– Homem num Estojo (1898)
– Groselha (1898)
– Queridinha (1898)
– A Senhora do Cãozinho (1899) (No Brasil A Dama do Cachorrinho)


UMA OBRA SELECIONADA: A Senhora do Cãozinho

 

PERSONAGENS PRINCIPAIS

– Dmitriy Dmitrich Gurov, banqueiro de Moscovo, que desconsidera a esposa, achando-a banal e entediamte, uma espécie inferior, a quem é infiel.

– Anna Sergeyevna, uma jovem mulher casada, um tanto abandonada pelo marido, mais velho do que ela, e muito voltado para a sua vida profissional.

 

BREVE RESUMO

            Dmitriy Dmitrich Gurov, um homem a chegar aos quarenta anos, estava casado com uma mulher que parecia ter o dobro da sua idade, alta e esquisita. Ele achava que ela tinha ideias curtas e aspeto repulsivo, e procurava não estar muito tempo em casa. Tinha uma filha e dois filhos. Passara uns dias em Ialta, sempre à procura de novos encontros, não lhe escapavam as mulheres bonitas. Um dia viu uma senhora loira, nada alta a passear com um cãozinho, que lhe chamou à atenção. Voltou a encontrá-la no jardim municipal e no parque, sozinha, não sabia quem era, para ele era a mulher do cãozinho (cachorrinho). Ele no meio dos homens não sabia o que dizer, chateava-se, mas no meio de mulheres não lhe faltavam palavras, sentia-se feliz.

Um dia ao entardecer encontram-se no jardim ao jantar, Gurov fez uma festa ao cãozinho, Spitz, ele não o conhecia e rosnou, e a senhora esclareceu-o que ele não mordia, mas corou. Era muito tímida, e a custo iniciaram uma conversa. Espontaneamente fizeram algumas revelações um ao outro. Ele disse que era banqueiro em Moscovo, onde possuía duas casas, e ela que fora criada em Petersburgo, mas casara-se numa cidade de província não muito longe dali. Confessou que dissera ao marido que estava doente e viera para ali descansar, esperando a vinda dele a qualquer momento. Ele viu-a frágil e sensível, a viver uma vida tão insípida que saiu dali com um sentimento de pena por ela.

Uma semana mais tarde encontra-se no molhe da cidade a ver a entrada de um vapor no porto, conversaram animadamente, até que a multidão que estava por ali se dispersou. De repente ele abraça-a e dá-lhe um beijo na boca. Há uma atração demasiado forte entre eles – irresistível. Anna Sergeyevna cedeu aos seus desejos, mas sentiu-se a mais vil das mulheres ao ceder àquela aproximação, o marido deixara-a vir para ali descansar, e afinal ela estava-o a trair. Ela queria ter uma vida honesta, o seu marido não demoraria a chegar, isto não podia estar a acontecer. Disse que ia pensar nele, mas que tinha de se ir embora, que não lhe ficasse com rancor. E Gurov, embora contrariado teve de se ir embora.

Dmitrich Gurov regressou a Moscovo, era já inverno. Tenta integrar-se no seu trabalho e esquecê-la, mas aquela mulher não lhe saída do pensamento. Fechasse ele os olhos que ela lhe vinha à mente; e a dormir que estivesse, ela aparecia-lhe em sonhos. Ela tinha um casamento infeliz como o dele. Começou a interrogar-se se não a amava mesmo, sendo um homem de relações tão volúveis. Estava farto dos filhos e da mulher. Um dia disse em casa que ia a Petersburgo, e foi à cidade onde vivia Anna Sergeyevna. Sabia que o marido se chamava Drídiritz, era de origem alemã, e vai à sua procura. Não demorou a encontrar a casa, ainda viu o cão, cujo nome, de repente lhe fugiu da lembrança: Não a viu e não teve coragem de lhe entrar pela casa dentro.

Ora no teatro da cidade ia apresentar-se o espetáculo A Gueixa, era natural que ela fosse à estreia. Foi lá e não demorou a encontra-la, acompanhada de um senhor de suíças, muito alto e curvado. Ele compreendeu logo que estava na presença porventura a mulher mais bela do mundo. Durante um intervalo o marido veio fumar cá fora e ele foi junto dela saudá-la. Ela ficou embaraçada, saindo de imediato até cá fora para um sítio menos frequentado, perguntando, porque viera ele ali, e para quê? Ele não sabia o que dizer e pediu para ela ter compreensão. Foi então que ela lhe confessou que sofria por andar sempre a pensar nele. Ele não resistiu a puxá-la para si e beijá-la. Ela suplicou-lhe para que se afastasse, que depois se encontrariam em Moscovo. Estava tomada por um sentimento contraditório de felicidade e angústia. Afastam-se e ele sai do teatro.  

A partir daquele encontro Anna Sergeyevna passou a ir regularmente a Moscovo, dizendo ao marido que ia a um médico especialista de senhoras. Ela quando chegava ao hotel anunciava a sua chegada, enviando-lhe para casa um chapéu vermelho, para não se denunciar. Um dia Gurov foi levar a filha ao liceu e a seguir foi encontrar-se com ela ao hotel. Tinha uma vida dupla: uma convencional, com a família, baseada na mentira; e outra secreta com a amante, sob o signo do adultério. Quando os dois se encontraram no hotel, beijaram-se apaixonadamente. Tomaram chá. Ela chorou de emoção. Estes encontros prosseguiram, eles não sabiam como os parar. Os dois tinham descoberto finalmente o amor, mas continuavam presos às amarras do passado, de que não sabiam como se libertar. Tinham, contudo, a esperança de um dia encontrarem a solução, o mais complicado ainda estaria para vir.  

 

Tchékhov com a esposa Olga, que o acompanhou a Badenweiler

 COMENTÁRIO GERAL DESTE CONTO

            O conto começa inopinadamente, sem grandes antecedentes. Ao estilo de Tchekhov, versa uma fatia da vida das personagens. É considerado uma obra-prima do gênero pela capacidade do autor em retratar a psicologia das personagens de forma subtil e complexa, através de um estilo realista e conciso. Usa uma linguagem simples e direta para descrever a vida de Dmitri Gurov, um homem infeliz e entediado que busca nas aventuras amorosas um meio para fugir da monotonia da sua existência.

            O autor utiliza a narrativa para explorar temas complexos, como a natureza do amor e da felicidade, a relação entre as pessoas e a sociedade, procurando utilizar diferentes técnicas para criar suspense e surpreender o leitor. A história é contada na terceira pessoa, mas está focada no ponto de vista de Gurov, o que permite ao leitor experimentar a transformação da personagem ao longo do conto. Há um aspeto original nesta obra, o autor tenta descrever as emoções não por expressões inflamadas das personagens, mas através de pequenos detalhes e gestos exteriores.

            O conto não se limita a uma simples história de amor proibido, ele mergulha no cotidiano da vida social. E mais, A Senhora do Cãozinho (cachorrinho) é uma obra que consegue ser ao mesmo tempo uma história íntima e pessoal e uma reflexão profunda sobre a natureza do ser humano – a condição humana. É fotográfica, quase amoral, o autor não se preocupa muito em tecer comentários morais das suas personagens. É um exemplo notável do poder da literatura em explorar e iluminar as complexidades da vida, para que, sem preconceitos possamos refletir livremente sobre ela.

Casa de Tchékhov em Melodino transformada em museu
 

 A IMPORTÂNCIA DE ANTON TCHÉKHOV PARA A LITERATURA OCIDENTAL

       Anton Tchékhov notabilizou-se pela sua capacidade capturar a complexidade das emoções humanas, indo até ao mais profundo da vida cotidiana. Os seus contos, peças de teatro e novelas são marcados pela sensibilidade e sutileza da sua escrita, que influenciaram diversos escritores posteriores, mais claramente na forma como introduziu a técnica da “corrente de consciência” ou “fluxo da consciência” na literatura, muito utilizada no século XX.

            Os seus contos, em particular, são considerados como uma das mais importantes contribuições à forma literária do conto moderno, ao lado de Edgar Alan Poe. A sua técnica previa narrar um corte abrupto da vida das personagens, sem prólogos ou epílogos. Eles são caracterizados pela sua concisão, objetividade, e mestria em capturar detalhes significativos da vida cotidiana que muitas vezes passam despercebidos. A sua obra foi admirada por autores como James Joyce, Liev Tolstói, Máximo Gorki, Virginia Woolf, e muitos outros.

            Além de suas realizações literárias, Tchékhov era médico, e também conhecido pelo seu grande humanismo. Teve uma vivência rica de experiências, por vezes dolorosas. Os seus escritos refletiam as preocupações e questões sociais da sua época, incluindo a pobreza, a injustiça e a desigualdade. Ele preocupava-se mais em equacionar os problemas da sociedade, do que apresentar soluções para os mesmos. Fugia ao debate ideológico. Isso não obstou que se tornasse um dos mais acérrimos paladinos da justiça social da sua época, por obrigar as pessoas a refletir.

Em suma, a importância de Anton Tchékhov para a literatura ocidental é inegável. Ela foi escrita num período em que a sua influência era fulcral na cultura. A sua obra literária foi traduzida por dezenas de línguas, influenciou milhões de leitores e continuou a inspirar e influenciar escritores de todo o mundo até hoje. A proficiência com que consegue captar a realidade e atingir a profundidade da vida cotidiana continua a ser um exemplo de excelência literária. Morreu aos 44 anos de idade de tuberculose, quando ainda se esperava o melhor dele.

 


Martz Inura
10.5.2023