sábado, 8 de julho de 2023

ERNEST HEMINGWAY

 

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ERNEST HEMINGWAY
POR QUEM OS SINOS DOBRAM
EDIÇÃO «LIVROS DO BRASIL» LISBOA
Tradução de Monteiro Lobato


O HOMEM
            Ernest Miller Hemingway é natural do Estado de Idaho, dos Estados Unidos da América do Norte. Nasceu em 21 de Julho de 1899 e faleceu em 2 de Julho de 1961. Fez apenas o segundo ciclo liceal, aventurando-se ainda jovem à carreira do jornalismo. Quis-se oferecer para a Primeira Grande Guerra, mas foi recusado por ter problemas de visão, contudo, não iria desistir da ideia de entrar na guerra, conseguindo um lugar de motorista na Cruz Vermelha em Itália. Vem dali O Adeus às Armas. Regressa à Europa em 1921, e aqui estabelece aqui relações privilegiadas com personalidades, que se viriam a tornar famosas, como Ezra Pound, Scott Fitzgerald, e Gertrude SteinTeve uma vida muito atribulada, com quatro casamentos e outras paixões à mistura. Foi premonitória a confissão de Fitzgerald, quando disse que ele precisava de uma mulher a cada livro. Acabada a guerra volta para a América, instala-se na Florida, mas cedo se aborreceu daquela monotonia em que vivia. Em 1930 está em Havana, a capital de Cuba, e entre 1936 e 1939, durante a Guerra Civil de Espanhaem Madrid, como correspondente de um jornal. Esta experiência inspirou Por Quem os Sinos Dobram. No fim da Segunda Guerra Mundial instalou-se em Cuba, mais outra paixão e um novo romance, O Velho e o Mar. Com a idade a sua saúde debilitou-se, sofria de diabetes, hipertensão, perda de memória, entrou em depressão, doença que já tinha afectado fatidicamente seu pai, e que o veio a levar a ele também ao suicídio com uma espingarda de caça.

A OBRA
            Ele foi jornalista, repórter de guerra, tem uma produção literária variada, que consta de literatura de viagens, como As Verdes Colinas de ÁfricaAs Neves do Kilimanjaro, crónicas de grandes momentos como Morte na TardeParis é uma Festa, cartas, contos, histórias, e dez romances, de que se destacam: O Adeus às ArmasPor Quem os Sinos Dobram e O Velho e o Mar.
      As suas obras ganham mais sentido e tornam-se mais veementes quando retratam as suas experiências pessoais, de que ele se socorre para lhes dar um realismo muito intenso. Ganhou o Prémio Pulitzer em 1953, depois de ter publicado O Velho e o Mar, e em 1954, foi laureado com o Prémio Nobel de Literatura. É conhecida a paixão do autor por Espanha.




POR QUEM OS SINOS DOBRAM

Sinopse do romance
         Como estratégia para uma ofensiva republicana, o general Goltz destaca Robert Jordan para a zona de Segóvia, onde vai dinamitar uma ponte, integrado numa operação mais vasta, destinada a conquistar aquela cidade. Tem ali a apoiá-lo dois grupelhos instalados em cavernas, o de Pablo, com 11 elementos e 5 cavalos e o de El Sordo, com 17 e sete cavalos, relativamente afastado.
            O grupo tinha elementos vindos da Estremadura, de destruir comboios. Pablo dá nome ao grupo, mas é um bêbado impenitente, descrente daquela acção ofensiva, e é a mulher, Pilar, que verdadeiramente manda ali. Pensam mesmo em matar Pablo, dado perigo que ele representa para o grupo, mas a mulher opõe-se e fica-se por aí. Esta apresenta a jovem Maria a Jordan, que com ela vai desencadear a relação romântica do romance. Mesmo de cabelo rapado, por acção dos falangistas, é graciosa e bela.
            Reconhecem a ponte que se pretende destruir, mas a missão é difícil, está ali um destacamento militar galego a protegê-la. Um forte nevão obriga a atrasar a operação. A vida na gruta é estúpida, ainda que cheia de sobressaltos, sobretudo quando sobrevoados por aviões. Aproveitam para recordar o passado recente, a acção de Pablo na tomada de Ávila e a morte horrenda de 20 fascistas com manguais de malhar trigo.
            Fazem uma visita ao grupo de El Sordo, que os vai apoiar, e regressam ao seu covil. A missão é difícil, questionável, não tem o apoio de Pablo, mas mesmo assim estão determinados a sacrificar-se pela República. Na ausência do marido, Pilar conta excertos da sua vida antes da guerra e a sua relação com Pablo. Este deve ter ouvido qualquer coisa a seu respeito que se mostra mais colaborante. Aguarda-se pelo melhor momento para desencadear a acção, na gruta fala-se de episódios recentes da guerra, a morte de misericórdia de um dos seus amigos, Kachkine, que foi gravemente ferido numa acção.
            Pela caverna passa um elemento destacado de uma patrulha falangista, aproxima-se demasiado e é abatida por Jordan e o cavalo recolhido. Temem um assalto e colocam quatros metralhadoras em posições estratégicas. Pouco depois aparece o resto da patrulha, que passa sob a mira das suas armas. Os falangistas parecem não dar pela sua presença e estes não desencadeiam o ataque, passando despercebidos, o que os terá salvado de uma morte certa.
            Pouco depois, ali perto, o grupo de El Sordo é atacado. Ele tinha mandado procurar cavalos e denunciado a sua posição. Há quem no grupo de Pablo queira ir ajudá-los, mas acabam por desistir da ideia, isso ia ser inútil, os dois grupos iam ser dizimados e não seria possível levar a cabo a missão de destruir a ponte. El Sordo resiste aos falangistas, desloca-se para cimo do monte, mas pouco depois vem a aviação que desfaz o grupo, que acaba por ser aniquilado pelos falangistas.
            É uma sensação terrível de saber que os seus amigos tinham sido todos mortos, mas felizmente encontra-se vivos, não foram detectados. Perante esta situação Jordan escreve uma carta a Goltz, enviando o seu emissário, Andrés. Aguardam naquela sofreguidão, Maria acaba por contar a Jordan as sevícias, as violências e atrocidades por que passou às mãos dos falangistas. Uma história de um horror difícil de ouvir da sua boca.
            O nevão foi forte, ainda se demoram, na gruta, entretanto Jordan aproveita para evocar o seu passado, falando do seu avô, e do seu pai, que se suicidara. Naquele impasse desaparece Pablo, bem como os explosivos destinados a fazer a detonação. Entretanto, Andrés, que fora levar a mensagem a Goltz, encontra especiais dificuldades em penetrar nas linhas amigas, onde há muita desconfiança, muita burocracia. No grupo, depois de um reconhecimento à ponte fazem um ponto da situação e dão-se conta da sua insuficiência para empreender a missão.
            Entretanto, Pablo, arrependido, regressa com cinco camaradas, ingénuos militantes da causa, dispostos a dar a vida pela República, mas sem os explosivos, que deitara ao rio. Jordan, com algumas granadas e uns restos de explosivos, consegue reunir material para ir fazer explodir a ponte, improvisando. O resto pode o leitor saber ao ler o livro. A acção decorre num intervalo de quatro dias, sempre na eminência do perigo, com a morte a rondar por perto, alguma paixão à mistura, e reminiscências de carnificinas a povoar-lhes o pensamento.

Personagens mais importantes
          Robert Jordan: americano que se ofereceu para as Brigadas Internacionais em apoio à República Espanhola, e é destacado para destruir uma ponte. Tem uma paixão por Maria.
         Pilar: Mulher de Pablo, personagem forte de mulher, que cheira o futuro, e quem verdadeiramente manda ali no grupo, a sibila do romance.
         Maria: Jovem que foi estuprada pelos falangistas, e se deixa apaixonar por Robert Jordan. Figura frágil, vitimizada, a dar um lampejo de romantismo no meio de tanta tragédia.
        Pablo: quem dá nome ao grupo, corajoso no passado, mas que está afectado psicologicamente pela guerra. É um bêbado inveterado, por vezes cobarde.
     Anselmo: Guia de Robert Jordan, corajoso mas sensato, ainda tocado pela humanidade que escasseia por ali.
           Rafael: o cigano, pessoa ingénua, bem-intencionada, mas pouco vocacionada para aquela guerra.



Este romance foi adpatado ao cinema logo em 1943 por Sam Wood, com Gary Cooper e Ingrid Bergman

Linguagem.
            Utilizada uma linguagem objectiva, fria, sem grandes artifícios, jornalística, dando vida a factos intensamente vividos, abrangendo os episódios mais horríveis daquela guerra, as cenas mais desumanas, qual rosário de calamidades, cada qual a mais horripilante, mas também com momentos de doçura, de esperança e lirismo, a vida, toda ela, no seu selvagem esplendor.
            Recorre muito ao discurso directo. Usa e abusa de longos diálogos sem qualquer comentário ou descrição, mas estes são tão intensos e verdadeiros que os conseguimos suportar sem enfado. O ambiente de guerra é pesado, o futuro imediato imprevisível, o que leva a que as palavras se tornem densas, cheias de um significado que é imperioso apreender.

Importância desta obra
             Por quem os Sinos Dobram é uma obra marcante, com uma intensidade e uma riqueza de pormenores com que se costumam distinguir os romances de cariz autobiográfico. Apesar de, ao longo da narrativa as personagens estarem sempre sob o espectro de uma morte iminente, a vida ocorre ali nas suas diversas cambiantes, transborda de humanidade. Hemingway consegue traduzir com alguma exactidão os efeitos do egocentrismo e do divisionismo espanhol: Onde se encontrarem três espanhóis juntos, dois aliam-se contra o terceiro, e depois o dois primeiros começam a trair-se mutuamente. Nem sempre, é claro, mas com a frequência suficiente para tirar uma conclusão. E infelizmente, esta característica não será estranha a toda a humanidade, desde Abel a Caim.
            Embora alguns críticos possam encontrar fraquezas neste romance: como sejam a linguagem por vezes obscena; o amor salvífico entre Jordan e Maria, por demais repentino para ser crível; algumas paragens na narrativa, justificadas pelo nevão, que ele aproveita para evocar o passado; longos diálogos com pouco enquadramento; uma linguagem por vezes coloquial, jornalística; quanto a nós, estas debilidades são pouco relevantes, o livro relata com grande veemência as consequências do ódio e da intolerância, com o seu caudal de perseguições despóticas, processos vexatórios, suplícios cruéis, condenações demenciais, atentados irracionais, e todo um rosário de desvarios, que ele descreve com uma grande leveza de meios, sem descurar o rigor narrativo. Quase sem querer, leva-nos ao interior de uma guerra civil, de violência estrema, a que assistimos à distância, interessados, ainda que com alguma repulsa.
            As insuficiências que se apontam ao livro serão apenas artifícios para escrever o romance, que é sobretudo uma obra de arte, não um exemplar de realismo e convenções que se queiram apresentar ao leitor. O livro obriga-nos a uma reflexão profunda sobre a vida e a morte, o amor e o ódio, a coragem e a cobardia, a relatividade das ideias, a baixeza a que pode descer o género humano. É o testemunho da insanidade a que leva à guerra, aqui civil, que opõe irmãos, cidadãos do mesmo país, e, por amor a ideias de um valor passageiro, mesquinhas. Os fins defensáveis não podem justificar os meios perversos. Ele conduz-nos a ambientes, realmente vividos, em que se mata e morre por ninharias, a sociedade perdeu a sua consciência moral, entrou em anomia.
            Por quem o Sinos Dobram, pondo a nu a violência que ainda existe no género humano, gerada no interior do caldo económico, social e cultural em que se insere, é, sem dúvida, uma obra que consegue iluminar historicamente um período dos mais importantes do século XX, premonitor da Segunda Guerra Mundial, em que o imperialismo económico e político e as ideologias estão no seu auge, é um dos manifestos anti-guerra mais veementes que se possam ler, uma obra a vários títulos fundamental para a compreensão deste período. Ainda que Hemingway não se detenha em grandes explanações morais, a vida está lá, com toda a evidência, para o leitor tirar as suas ilações de ética. Os sinos dobravam pelos milhares de mortos que estavam a ocorrer a cada momento por toda a Espanha católica, vitimizando as duas facções em luta, e continuam a dobrar pelas vítimas das guerras que sobrevêm ainda hoje, estupidamente, por esse mundo fora. Há que ler este livro.

(A REVER)

Martz Inura, 21 de Junho de 2015

terça-feira, 13 de junho de 2023

ANTON TCHÉKHOV

 



ANTON TCHÉKHOV
A Senhora do Cãozinho
Tradução de Nina Guerra e Filipe Guerra
Relógio D´Água Editores



O HOMEM

Anton Pávlovitch Tchékhov foi um consagrado escritor russo, percursor do conto moderno. O pai era um pequeno comerciante, cristão ortodoxo, muito devoto, mas demasiado austero, talvez tirano, e a mãe muito carinhosa e ótima contadora de histórias. Tchekhov tinha mais cinco irmãos e chegou a participar no coro da sua paróquia. Foi neste ambiente que formou a sua personalidade. Nasceu em 29 de janeiro de 1860, em Taganrog, um porto marítimo no Mar de Azov.

O pai foi à falência, tinha ele dezasseis anos, a família foi para Moscovo à procura de novas oportunidades, vivendo com grandes dificuldades, e ele continuou em Taganrog para concluir dos seus estudos secundários, que teve de pagar através dos mais diversos trabalhos. A sua paixão era Medicina, e foi então para Moscovo, onde se matriculou na faculdade e se juntou à família. Mas mesmo aqui teve de recorrer ao seu génio na escrita para sobreviver economicamente.

Ele ansiava por ser um médico reputado, um investigador científico, mas aos vinte anos já era um escritor famoso, os seus contos eram avidamente lidos. O leitor moderno deve ter em conta que naquele período, em que não havia rádio, televisão ou cinema, a literatura, cuja publicação muitas vezes se iniciava nos jornais em fascículos, tinha muito público. Em 1884, forma-se em Medicina, mas continua a escrever, e em 1886 ganha o prémio literário Pushkin. Infelizmente já evidenciava sintomas da tuberculose, que o levariam à morte.

Em 1890 faz uma viagem de comboio e navio ao Extremo Oriente, à Ilha Sacalina, no Mar do Japão, onde convive com as condições de vida difíceis e desumanas que as pessoas ali suportam, que o marcaram bastante. Em 1886 compra uma casa a cinco quilómetros de Moscovo, em Melinovo, hoje museu, para onde leva a família e exerce medicina, muitas vezes gratuita, aos camponeses pobres em redor. Dedicava-se também à agricultura e jardinagem. E continuava a escrever, isso era obrigatório, incluindo agora peças de teatro, que tiveram maior ou menor êxito.  

                Durante uma visita a Moscovo, em 1897, sofre uma forte hemorragia nos pulmões. Ele não queria reconhecer a sua doença, foi com dificuldade que o convenceram a ser observado. Foi-lhe diagnosticada uma tuberculose e recomendado um novo estilo de vida. Com a morte do pai em 1898, ele compra uma casa em Ialta, onde pensa ter melhores condições para se curar, levando para lá a mãe e uma irmã. Ali continua a escrever várias obras, em que se inclui duas peças para o Teatro de Arte em Moscovo. Reincide na plantação de árvores e jardinagem. Foi visitado por Liev Tolstói e Máximo Gorki, nomes sonantes da literatura russa, que o admiravam e já se tinham apercebido da sua grave doença.

            Ele era um solteirão muito cobiçado na Rússia, e em maio de 1901 casa-se com Olga Knippe, uma atriz. Dado a doença dele e a profissão dela, ele passa a maior parte do tempo em Ialta e ela em Moscovo. Um tempo depois ela tem um aborto espontâneo, o que é motivo de muita controvérsia. A verdade é que ele, apesar do seu otimismo continua a piorar. Em 1904 a doença está no seu estádio terminal, embora ele não o reconheça. Os seus amigos recomendam-lhe a ir fazer uma cura à Alemanha – era dar-lhe mais uma réstia de esperança para a sua vida, que se estava a encurtar. Em 3 de junho, ele partiu com Olga para a cidade alemã de Badenweiler, na Floresta Negra, para ali ser tratado, mas já era tarde. Em 15 de julho de 1904 ele morria naquela cidade.

 

    Um dos volumes publicados pela Relógio D'Água Editores

 A OBRA

            A obra de Anton Tchékhov é vasta, e estendem-se ao conto, ao ensaio, às novelas, às peças de teatro e às cartas. Não se vão referir aqui todas, que facilmente poderão ser recolhidas nas suas imensas biografias. Citamos as mais importantes para que os leitores as comecem a ler:


No teatro, umas catorze peças, as seguintes:
– Ivanov (1887)
– A Gaivota (1896)
– As Três Irmãs (1900)
– O Jardim das Cerejas (1904)

Nos ensaios (dois):
– Caderno de Notas

Nas novelas (cinco):
– A Estepe (1888)
– O Duelo (1891)

             Nos contos, eles são mais de quinhentos, teremos de nos confiar ao bom gosto dos editores que normalmente editam uns tantos em vários volumes, não nos dando outra escolha, contudo, salientam-se alguns:


– O Camaleão (1884)
– Vanka (1886)
– Kachtanka (1887)
– O Estudante (1894)
– A Casa de Mezanino (1896)
– Ionitch (1898)
– Homem num Estojo (1898)
– Groselha (1898)
– Queridinha (1898)
– A Senhora do Cãozinho (1899) (No Brasil A Dama do Cachorrinho)


UMA OBRA SELECIONADA: A Senhora do Cãozinho

 

PERSONAGENS PRINCIPAIS

– Dmitriy Dmitrich Gurov, banqueiro de Moscovo, que desconsidera a esposa, achando-a banal e entediamte, uma espécie inferior, a quem é infiel.

– Anna Sergeyevna, uma jovem mulher casada, um tanto abandonada pelo marido, mais velho do que ela, e muito voltado para a sua vida profissional.

 

BREVE RESUMO

            Dmitriy Dmitrich Gurov, um homem a chegar aos quarenta anos, estava casado com uma mulher que parecia ter o dobro da sua idade, alta e esquisita. Ele achava que ela tinha ideias curtas e aspeto repulsivo, e procurava não estar muito tempo em casa. Tinha uma filha e dois filhos. Passara uns dias em Ialta, sempre à procura de novos encontros, não lhe escapavam as mulheres bonitas. Um dia viu uma senhora loira, nada alta a passear com um cãozinho, que lhe chamou à atenção. Voltou a encontrá-la no jardim municipal e no parque, sozinha, não sabia quem era, para ele era a mulher do cãozinho (cachorrinho). Ele no meio dos homens não sabia o que dizer, chateava-se, mas no meio de mulheres não lhe faltavam palavras, sentia-se feliz.

Um dia ao entardecer encontram-se no jardim ao jantar, Gurov fez uma festa ao cãozinho, Spitz, ele não o conhecia e rosnou, e a senhora esclareceu-o que ele não mordia, mas corou. Era muito tímida, e a custo iniciaram uma conversa. Espontaneamente fizeram algumas revelações um ao outro. Ele disse que era banqueiro em Moscovo, onde possuía duas casas, e ela que fora criada em Petersburgo, mas casara-se numa cidade de província não muito longe dali. Confessou que dissera ao marido que estava doente e viera para ali descansar, esperando a vinda dele a qualquer momento. Ele viu-a frágil e sensível, a viver uma vida tão insípida que saiu dali com um sentimento de pena por ela.

Uma semana mais tarde encontra-se no molhe da cidade a ver a entrada de um vapor no porto, conversaram animadamente, até que a multidão que estava por ali se dispersou. De repente ele abraça-a e dá-lhe um beijo na boca. Há uma atração demasiado forte entre eles – irresistível. Anna Sergeyevna cedeu aos seus desejos, mas sentiu-se a mais vil das mulheres ao ceder àquela aproximação, o marido deixara-a vir para ali descansar, e afinal ela estava-o a trair. Ela queria ter uma vida honesta, o seu marido não demoraria a chegar, isto não podia estar a acontecer. Disse que ia pensar nele, mas que tinha de se ir embora, que não lhe ficasse com rancor. E Gurov, embora contrariado teve de se ir embora.

Dmitrich Gurov regressou a Moscovo, era já inverno. Tenta integrar-se no seu trabalho e esquecê-la, mas aquela mulher não lhe saída do pensamento. Fechasse ele os olhos que ela lhe vinha à mente; e a dormir que estivesse, ela aparecia-lhe em sonhos. Ela tinha um casamento infeliz como o dele. Começou a interrogar-se se não a amava mesmo, sendo um homem de relações tão volúveis. Estava farto dos filhos e da mulher. Um dia disse em casa que ia a Petersburgo, e foi à cidade onde vivia Anna Sergeyevna. Sabia que o marido se chamava Drídiritz, era de origem alemã, e vai à sua procura. Não demorou a encontrar a casa, ainda viu o cão, cujo nome, de repente lhe fugiu da lembrança: Não a viu e não teve coragem de lhe entrar pela casa dentro.

Ora no teatro da cidade ia apresentar-se o espetáculo A Gueixa, era natural que ela fosse à estreia. Foi lá e não demorou a encontra-la, acompanhada de um senhor de suíças, muito alto e curvado. Ele compreendeu logo que estava na presença porventura a mulher mais bela do mundo. Durante um intervalo o marido veio fumar cá fora e ele foi junto dela saudá-la. Ela ficou embaraçada, saindo de imediato até cá fora para um sítio menos frequentado, perguntando, porque viera ele ali, e para quê? Ele não sabia o que dizer e pediu para ela ter compreensão. Foi então que ela lhe confessou que sofria por andar sempre a pensar nele. Ele não resistiu a puxá-la para si e beijá-la. Ela suplicou-lhe para que se afastasse, que depois se encontrariam em Moscovo. Estava tomada por um sentimento contraditório de felicidade e angústia. Afastam-se e ele sai do teatro.  

A partir daquele encontro Anna Sergeyevna passou a ir regularmente a Moscovo, dizendo ao marido que ia a um médico especialista de senhoras. Ela quando chegava ao hotel anunciava a sua chegada, enviando-lhe para casa um chapéu vermelho, para não se denunciar. Um dia Gurov foi levar a filha ao liceu e a seguir foi encontrar-se com ela ao hotel. Tinha uma vida dupla: uma convencional, com a família, baseada na mentira; e outra secreta com a amante, sob o signo do adultério. Quando os dois se encontraram no hotel, beijaram-se apaixonadamente. Tomaram chá. Ela chorou de emoção. Estes encontros prosseguiram, eles não sabiam como os parar. Os dois tinham descoberto finalmente o amor, mas continuavam presos às amarras do passado, de que não sabiam como se libertar. Tinham, contudo, a esperança de um dia encontrarem a solução, o mais complicado ainda estaria para vir.  

 

Tchékhov com a esposa Olga, que o acompanhou a Badenweiler

 COMENTÁRIO GERAL DESTE CONTO

            O conto começa inopinadamente, sem grandes antecedentes. Ao estilo de Tchekhov, versa uma fatia da vida das personagens. É considerado uma obra-prima do gênero pela capacidade do autor em retratar a psicologia das personagens de forma subtil e complexa, através de um estilo realista e conciso. Usa uma linguagem simples e direta para descrever a vida de Dmitri Gurov, um homem infeliz e entediado que busca nas aventuras amorosas um meio para fugir da monotonia da sua existência.

            O autor utiliza a narrativa para explorar temas complexos, como a natureza do amor e da felicidade, a relação entre as pessoas e a sociedade, procurando utilizar diferentes técnicas para criar suspense e surpreender o leitor. A história é contada na terceira pessoa, mas está focada no ponto de vista de Gurov, o que permite ao leitor experimentar a transformação da personagem ao longo do conto. Há um aspeto original nesta obra, o autor tenta descrever as emoções não por expressões inflamadas das personagens, mas através de pequenos detalhes e gestos exteriores.

            O conto não se limita a uma simples história de amor proibido, ele mergulha no cotidiano da vida social. E mais, A Senhora do Cãozinho (cachorrinho) é uma obra que consegue ser ao mesmo tempo uma história íntima e pessoal e uma reflexão profunda sobre a natureza do ser humano – a condição humana. É fotográfica, quase amoral, o autor não se preocupa muito em tecer comentários morais das suas personagens. É um exemplo notável do poder da literatura em explorar e iluminar as complexidades da vida, para que, sem preconceitos possamos refletir livremente sobre ela.

Casa de Tchékhov em Melodino transformada em museu
 

 A IMPORTÂNCIA DE ANTON TCHÉKHOV PARA A LITERATURA OCIDENTAL

       Anton Tchékhov notabilizou-se pela sua capacidade capturar a complexidade das emoções humanas, indo até ao mais profundo da vida cotidiana. Os seus contos, peças de teatro e novelas são marcados pela sensibilidade e sutileza da sua escrita, que influenciaram diversos escritores posteriores, mais claramente na forma como introduziu a técnica da “corrente de consciência” ou “fluxo da consciência” na literatura, muito utilizada no século XX.

            Os seus contos, em particular, são considerados como uma das mais importantes contribuições à forma literária do conto moderno, ao lado de Edgar Alan Poe. A sua técnica previa narrar um corte abrupto da vida das personagens, sem prólogos ou epílogos. Eles são caracterizados pela sua concisão, objetividade, e mestria em capturar detalhes significativos da vida cotidiana que muitas vezes passam despercebidos. A sua obra foi admirada por autores como James Joyce, Liev Tolstói, Máximo Gorki, Virginia Woolf, e muitos outros.

            Além de suas realizações literárias, Tchékhov era médico, e também conhecido pelo seu grande humanismo. Teve uma vivência rica de experiências, por vezes dolorosas. Os seus escritos refletiam as preocupações e questões sociais da sua época, incluindo a pobreza, a injustiça e a desigualdade. Ele preocupava-se mais em equacionar os problemas da sociedade, do que apresentar soluções para os mesmos. Fugia ao debate ideológico. Isso não obstou que se tornasse um dos mais acérrimos paladinos da justiça social da sua época, por obrigar as pessoas a refletir.

Em suma, a importância de Anton Tchékhov para a literatura ocidental é inegável. Ela foi escrita num período em que a sua influência era fulcral na cultura. A sua obra literária foi traduzida por dezenas de línguas, influenciou milhões de leitores e continuou a inspirar e influenciar escritores de todo o mundo até hoje. A proficiência com que consegue captar a realidade e atingir a profundidade da vida cotidiana continua a ser um exemplo de excelência literária. Morreu aos 44 anos de idade de tuberculose, quando ainda se esperava o melhor dele.

 


Martz Inura
10.5.2023





sábado, 18 de fevereiro de 2023

FREDRIK BACKMAN


Um Homem Chamado Ove
Fredrik Backman
Tradução de Alberto Gomes
Editorial Presença (2016)
 

 O HOMEM                

       Fredrik Backman nasceu a 2 de junho de 1981 em Helsinborg, Scania, na Suécia. De início escreveu em jornais como o Helsinborgs Dagblad e o Moore Magazine, depois entusiasmou-se com a criação de blogues na Internet, onde alcançou grandes audiências. Ele tem uma cultura variada, o conhecimento da vida das pessoas comuns, e uma grande capacidade discursiva. Tornou-se famoso na Blogosfera, e em 2012 ousou entrar na área do romance, escrevendo Um Homem Chamado Ove, que teve sucesso imediato, sendo traduzido em mais de trinta línguas, sendo um bestseller. Em 2015 foi adaptado ao cinema. Os seus livros têm tido muita aceitação, sendo dos mais vendidos no seu país. Casou com Neda, tem dois filhos. É um escritor jovem, do qual ainda há muito a esperar.

A OBRA


A sua obra, tem muitos textos aproveitáveis nos jornais e na Internet, mas destacam-se aqui os seus romances:

Um Homem Chamado Ove (2012)
Coisas que o Meu Filho Precisa de Saber acerca do Mundo (2012 na Suécia, 2019 na GB)
A Minha Avó Pede Desculpa (2015
Britt-Marie Esteve Aqui (2014 na Suécia e 2016 na GB)
E a Cada Manhã o Caminho de Casa fica Mais Longe (2016)
Beartown (Também designado The Scandal) (2017)
The Deal of a Lifetime (2017)
Us Against You (2018)
Gente Ansiosa (2019 na Suécia, 2020 na GB)
The Winners (2022) [Beartown, Us Against You e The Winners constituem uma trilogia]



 

O LIVRO: UM HOMEM CHAMADO OVE:

 

a.       PERSONAGENS PRINCIPAIS



  Ove: a personagem principal do romance. Para alguns o pior vizinho do mundo. Um homem mal-humorado que perdeu cedo a mãe, e mais tarde o pai, e a esposa, Sonja. Tem 59 anos, foi aposentado quase à força, sente-se estranhado e perdeu o amor à vida. Herdou um Saab, que tem em muito estimação. É um tradicionalista, pouco dado à mudança. Sempre deprimido, pensou em se suicidar diversas vezes, mas pequenas incidentes com os vizinhos o vão impedir, prendendo-o à vida, que ao ser mais vivida se tornou mais suportável.
   Sonja: a falecida esposa, uma mulher muito bonita e conversadeira, que lhe fazia muita companhia, preenchendo a sua vida. Era professora. Teve um acidente que a mandou para uma cadeira rodas. Mesmo tendo já desaparecido, está muito presente na mente do marido, que a continuou a amar. 

  Parvaneh: a vizinha de Ove, de ascendência iraniana, tagarela, que tem paciência para o aturar, acabando por o compreender e ter algum domíno sobre ele. Está grávida e tem duas filhas.
  Patrick: marido de Parvaneth, consultor, com quem Ove não simpatiza, apelidando-o de o Esgalgado. Partiu uma perna em casa ao cair de um escadote

    Rune: um amigo de Ove, com quem este tem alguns desentendimentos, tornando-se seu inimigo. Mais tarde aparece com a doença de Alzheimer, e a sua relação vai mudar. Querem-no internar num lar.
    Anita: mulher de Rune, que se opõe ao seu internamento. 

    Anders: um vizinho vivendo do lado oposto da rua, dono de uma empresa de reboques. Tem um Audi, carro estrangeiro, que ele não vê com bons olhos a circular na Suécia. 
    Blond Weed: a namorada com quem Anders se anda a pavonear, cujo nome desconhece, e lhe dá esta alcunha brejeira. 

    Adrian: o carteiro do bairro, com quem Ove tem vários relacionamentos. 
    Jimmy: um vizinho obeso bem disposto com quem Ove convive. 
    Mirsad: jovem de 20 anos, bastante inseguro, homossexual. Ove, talvez por isso não simpatiza com ele, porém, quando o pai o expulsa da sua convivência, acaba por o receber na sua casa
   Lena: uma repórter local que procura obter uma entrevista de Ove, que salvou uma pessoa de morrer debaixo de um comboio. Afinal ele tinha um fundo bom. 
   O Gato: um bicho inicialmente detestado por Ove, que acaba por ser resgatado por ele e Parvaneh de morrer congelado na neve. Aquela deixou-o em cada de Ove a recuperar, e ele deixou que o animal ali ficasse minorando a sua solidão.


b.                   BREVE RESUMO

        O livro narra a vida de um homem chamado Ove que vive amargurado na sua velha casa. É um tanto antiquado, confunde um iPad com um computador, é contra as marcas de carro estrangeiras, não confia na Internet, não gosta de pagar impostos. Um dia faz uma ronda ao bairro bastante, exaltado por uma questão de estacionamento de um carro, e os vizinhos têm de vir cá fora acalmá-lo. Aborrece-se então com eles e fecha-se em casa, evitando quaisquer contactos. Por vezes sente-se invadido pela tristeza e sai às de carro, mas demasiado devagar, arreliando os outros condutores. É antipático no seu relacionamento com as pessoas, mesmo com Parvaneh, uma senhora de origem iraniana, compreensiva com a sua situação, que está grávida. Ainda carregava o peso da morte da mãe e do pai, e mais recentemente a da mulher, passam-no à reforma a contragosto – a sua vida é insípida. É então que lhe vem a primeira vez à cabeça suicidar-se, quando se prepara para consertar uma velha bicicleta. Tem mais uma conversa antipática com Parvaneh e o marido Patrick, a quem chama Esgalgado. Amolgaram-lhe a caixa do correio num acidente quando vieram para ali, e isto não foi em abono deles. Vai ter que restaurar a casa, que fizera com as suas próprias mãos. Entretanto, o vizinho Patrick cai de um escadote ao abrir uma janela, e a mulher vem pedir-lhe para o levar de carro hospital, mas ele esta maldisposto e não se mostra muito solícito e a ajudar. Ainda se vai aborrecer com Parvaneh, que é persistente e o convence a levá-lo, embora siga sempre mal-humorado. As duas filhas dela mostram-se brincalhonas dentro do carro, mas ele não lhes dá grande importância, não se sente com cara de palhaço. Está abatido e pensa em suicidar-se mais uma vez.

        Ove dá consigo a recordar a sua falecida mulher, Sonja, quando a encontroou num comboio. Ela gostava de falar e ele de estar calado. Na estação não tem jeito nenhum para tirar um bilhete de comboio com o seu cartão na máquina, porém, quando um homem cai à linha férrea vai lá retirá-lo com rapidez, salvando-lhe a vida. Faz uma viagem de carro atribulada na neve, e um gato aparece mais uma vez a rondar-lhe a casa. Há o evocar de um passeio com Sonja e o pai, que conduzia uma carrinha de caixa aberta. Ele e Parvaneh encontram o gato quase congelado na neve, conseguem salvá-lo e ela leva-o para casa dele, onde o deixa pousado num manta a recuperar. Ele não o quer por ali, mas como a falecida mulher gostava muito de um gato chamado Ernest, acabou por ficar com ele. Sentado no seu Saab, olha o casal Rune e Anita, que foram seus padrinhos de casamento. Estão a pensar em internar Rune num lar por ele sofrer de Alzheimer. Já fala com o gato e é procurado pela repórter, Lena, que o quer entrevistar por ele ter salvado a vida a um homem que caiu à via-férrea. Ele não dá importância ao caso. Volta a recordar-se de Sonja, sua falecida mulher, que teve um acidente num autocarro. Ficou inválida, por uma questão de burocracia não faziam a rampa para ela entrar com a cadeira de rodas na escola e ele foi lá e fez uma sozinho à sua custa. Ove vai buscar Patrick ao hospital que vem com a perna engessada, e leva consigo o gato, Parvaneh e as filhas, que o desenham.

        Uns dias depois, Ove fica de novo tão deprimido que pensa em suicidar-se, tomando uns comprimidos que sobraram de Sonja. Deixa sair o gato, mas o animal volta para casa ao ouvi ladrar ladrarum cão. O casal da frente chama por ele e com este incidente volta a fechar o frasco. É Anita que lhe vem pedir uma chapa "ordenada", que ele corrige para ondulada. Um jovem vem-lhe trazer uma carta, fora aluno da sua mulher, e precisa que lhe ajudem a reparar uma bicicleta. Anda a trabalhar para comprar um Renault e não se mostra muito solícito. Evoca a explicação de Sonja de ele se zangar com Rune, só porque o amigo comprou um BMW. Repara afinal a bicicleta ao rapaz. Não gosta do efeminado Mirsad, é preconceituoso que tem em relação aos homossexuais. Arranja tempo para fazer uma visita ao túmulo de sua mulher, Sonja, pedindo-lhe desculpa pelo atraso, recordando os fins dela, morta de cancro. Chega a casa nesse dia e tem um ataque de solidão. Vai então ao sótão buscar uma espingarda que pertencera ao pai de Sonja. Detesta homens de camisa branca, ou seja, os médicos e enfermeiros. O gato tinha saído, programa mais uma vez suicidar-se, mas entretanto chega a intrusiva Parvaneh a bater-lhe à porta e esconde a arma. Uma parelha de camisas-brancas vem ali a casa de Rune tratá-lo. Ove conversa com Patrick, e pede-lhe para lhe arranjar um reboque e atravessa o seu carro para não deixar sair a ambulância que viera buscar Rune, por aquele sítio não uam passar. Eles vão levar Rune dali e Ove põe-se a chorar.

        Está um farrapo humano. É então que decide mesmo suicidar-se. Escreve uma carta a Parvaneh, com quem, apesar de tudo se sente mais ligado, a explicar como deseja ser sepultado. Vai-se suicidar de camisola e cuecas para não sujar a roupa de sangue, pois quer ir bem vestido para a cova, onde repousa Sonja. Deixa mesmo dinheiro para o funeral. Por casualidade é interrompido por Adrian e Mirsad, que lhe vêm ali pedir ajuda, porque o pai de Mirsad pô-lo fora de casa. Adrian disse que talvez fosse bom ele deixá-lo ali dormir por uma noite. Repara numa foto da mulher e baixa a arma. Mais uma vez estragam os seus planos para se suicidar. Aceita a custo que o rapaz fique ali a viver com ele uns dias, enquanto Rune parece que vai ser internado. Entretanto, a polícia vem ali prender três jovens drogados e falar com Ove para ele tirar o carro e o reboque que ele estacionou ali a atravancar a rua, mas ele já os tinha retirado e vai de novo à campa de Sonja dizer-lhe que ainda não vai poder ir para junto dela. Querem internar Rune, mas a mulher, Anita, consegue opor-se aos três enfermeiros. Com o tempo Ove sente-se mais envolvido com a vizinhança e com o caso de Rune. Todavia, estava a pensar em pôr Mirsad fora da sua casa, ele era um larilas. As suas relações com Jimmy, um vizinho gordo, e com Mirsad, entretanto melhoraram. Ele com a morte da mulher ficara muito abalado, parara de viver, mas arrebitara. Um dia vai mesmo com eles no seu carro comprar um iPad. Mais tarde é abalado com um problema cardíaco, tendo de ser levado ao hospital, e possivelmente operado, Parvaneh opõe-se, diz que ele não tem nada, não tem jeitinho nenhum para morrer. Levam-no a um médico que o medica e diz que ele tem o coração dilatado, pode durar meses ou, com sorte, anos. E assim regressa a casa e se chega ao epílogo.  

 

Ove, Parvaneh e as filhas no filme Um Homem Chamado Otto de Hannes Holm, com Tom Hanks

 

c.        COMENTÁRIO GERAL

       

        O livro seduz-nos por dar relevância à vida de um homem amargurado e solitário, feita de pequenas coisas, de insignificâncias que acabam por ser decisivas, descrevendo-nos situações por vezes caricatas. Tem um discurso fluente e explora a sátira, conseguindo, pois, encontrar muito que contar de uma pessoa que à primeira vista não teria muita história. A narrativa é quase uma fábula, usa e abusa da ironia e do sarcasmo. Ove está permanentemente mal-humorado, é por vezes contraditório, patético, enfadonho, contudo, a sua vida, que à partida nos parece com pouco sentido, tem por trás dela muito por explicar, muita humanidade merecedora de ser revelada.

        Mas voltemos agora àquilo que este romance tem de menos bom. Há quem considere este livro vulgar, muito vago, e até superficial, para agradar ao público atual. A sua estrutura é minimalista, e as personagens, se lhe excetuarmos Ove e Parvaneh, pouco ricas. Podemos também considerá-lo repetitivo, sem uma linguagem grandiosa, porém, é curioso que o autor consegue mesmo assim torná-lo aliciante, revelando-lhe um conteúdo desconcertante, ao dar várias nuances às suas situações, como sejam a sua predisposição para o suicídio, propósito sempre frustrado, bem como o seu visceral mau humor e ar malvado, que visto com a compreensão de Parvaneh, é apenas superficial.

        O autor vendeu, e rapidamente, milhões de exemplares deste livro, o seu êxito comercial foi enorme, contudo, este facto não corresponde ao real valor da obra, que, embora interessante, está obviamente sobrevalorizada. Hoje o mundo digital tende a sobrepor-se ao mundo real, as redes sociais e o mediatismo podem distorcer o valor dos livros, e não só. Imaginemos a tão pouco aceitação inicial das obras de Franz Kafka, James Joyce, Marcel Proust, Vladimir Nabokov, Stephen King, Agatha Christie, e mesmo J. K. Rowling, entre muitos outros. Os editores nem sequer aceitaram editar as suas primeiras obras, deram-lhe várias negas, alguns nem as conseguiram publicar em vida, e elas eram verdadeiras obras-primas.

        Um Homem Chamado Ove foi, pois, muito badalado nas redes sociais, onde o autor tem muita visibilidade cibernética, deu dinheiro a ganhar a muita gente, não falta para aí quem diga bem dele. Não sendo na nossa modesta opinião um romance extraordinário, a sua narrativa surpreende-nos apesar de tudo pelo seu realismo patético, pela sua narrativa fluída e divertida, conseguindo descrever-nos a pardacenta e conturbada vida de Ove com assomos de originalidade. Há um sentido profundo por trás de toda a sua simplicidade narrativa: o ser humano nunca é inteiramente mau, e por traz da sua aparente malvadez há sempre uma explicação de natureza psíquica e biológica. Fredrik Backman continua a escrever, é um jovem, e ainda nos pode vir a surpreender a com uma verdadeira obra-prima. 



        17/02/2023
        Martz Inura